Pedras no meio do caminho

XXIV. Nome de Guerra

O nome de Judite estava riscado pelo autor na capa da primeira edição desta obra. Para muitos, a começar no Ricardo Reis retratado por Saramago no “Ano da Morte”, estamos perante uma das obras mais importantes na renovação da literatura portuguesa contemporânea, ao lado de “Viagens na Minha Terra” de Garrett. O tema, a linguagem, a ordenação – tudo dá sinais de uma vida que persegue o mundo. E neste folhetim, onde vários fantasmas se encontram, não poderia faltar esta surpreendente obra de um grande artista que não deixou por mãos alheias o domínio da literatura moderna. Antunes persegue Judite. É uma procura que se exprime como verdadeira busca de uma sombra. Escrito por Almada Negreiros em 1925 é um romance de iniciação de um jovem de província, o Luís Antunes, provindo de uma família abastada. O tio de Antunes envia-o para Lisboa ao cuidado do amigo D. Jorge (“bruto como as casas” e ordinário) com o objetivo de fazer as “provas masculinas”. E o protagonista persegue Judite, mas esta percebeu perfeitamente que ele não estava destinado a ela, mas “não lhe faltava dinheiro”, que era o principal para esperar, “para disfarçar, para mentir a miséria e a desgraça”. «A Judite é um pedaço de verdade, autêntica, sem forma nem fuga. Verdade tão pura que não admite arranjo nem escape. Ao mesmo tempo, ela é a ignorância em pessoa. Verdade absoluta sem sonho. Sem imaginação. Os seus dezanove anos cheios de cicatrizes são a estátua mutilada da Verdade. Os gestos da estátua são falsos, é tudo mentira, apenas a matéria da estátua mutilada é verdade!»

«Só quando chegou à rua é que viu que não ia para parte alguma. Não havia nenhum lugar para onde ele fosse. A mesma multidão, as mesmas casas, as mesmas ruas e ele. Mas qualquer coisa de novo se passava na sua vida. Se sondava o seu íntimo, não havia nada até à profundidade. Do exterior nada lhe vinha, tudo encontrava resistência nos seus sentidos para o animar de imagens. Ele não se reconhecia: havia qualquer coisa de estranho na sua vida, qualquer coisa de estranho e dele próprio ao mesmo tempo». (…) «A Judite e o Antunes entraram ambos na intimidade um do outro como ladrões que não sabem exatamente o que vão roubar. Percorreram todos os cantos, indagaram de todos os caminhos, revolveram tudo o que se procura e não se encontra, e ambas as intimidades foram impiedosamente devassadas um pelo outro. Ainda que alguém viesse depois a entrar pela primeira vez nas suas vidas, não poderia deixar de reparar em que já lá tinham andado os ladrões.» (…)  «Todos quantos intervêm na vida dos outros, quer seja no seu favor ou contra, são afinal de uma cobardia que escapa à observação dos melhor atentos. Cobardes por duas razões: primeira, por serem incapazes de se reconhecerem e darem a conhecer o seu próprio caso pessoal para a aceitação geral; segunda, porque, ao intervirem na vida dos outros, quer seja no seu favor ou contra, são incapazes também de abnegar da sua própria pessoa. Se alguém decide da sua vida para servir os outros e não renuncia a si mesmo, em que poderá então ser equânime e admirável, justo e elucidativo? Respeitemos os que a tanto se afoitaram e se decidiram, mas desprezemos os que o fingem. A condição para saber ver ao longe é estarmos dentro de nós se se trata do próprio, ou de ter renunciado a si mesmo se se trata dos outros.

Moralidade deste romance: Não te metas na vida alheia se não queres lá ficar».

Agostinho de Morais

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