Pedras no meio do caminho

XXI. Jantar à portuguesa

Eu prometi que voltaria a Camilo Castelo Branco e aqui regresso ao rico mundo dos seus fantasmas. Ele bem merece. Ajuda-me o José Viale Moutinho, incansável na busca literária das melhores referências à comesaina.

Lembrava-me há dias que a frase tantas vezes ouvida às nossas mesas “Comi como um Abade” é uma citação ipsis verbis do João Semana, nas “Pupilas do Senhor Reitor”, que se lamentava por ter ainda de ver uma doente, D. Leocácia, depois daquele opíparo ágape… E já repararam que um bom cozinhado é como um bom texto, com as palavras certas nos lugares certos, os condimentos adequados com boa sintaxe e riqueza vocabular… Lembram-se o que disse o Bispo de Viseu sobre a religião?

Camilo dava tudo por um bom caldo verde e tripas. Fialho de Almeida perdia-se por umas perdizes bem temperadas. Ramalho orgulhava-se de fazer as melhores batatas fritas do orbe. João Penha fazia sonetos ao presunto e ao salpicão. Paulo Plantier reuniu as melhores receitas de escritores. João da Matta fez as ameijoas que levam o nome de Bulhão Pato, sendo este um dos maiores fazedores de pratos com a melhor caça e não com ameijoas.

Mas vamos ao nosso mestre de Seide, num livro menos conhecido, mas não menos importante. Falo de “Quatro Horas Inocentes” (1872). A descrição é, a todos os títulos deliciosa, e poderia passar-se em qualquer das nossas casas, desde que se mantenha o bom hábito de comer à mesa, a horas, com o vagar necessário e os bons manjares. Vou, por isso dar a palavra ao nosso querido Camilo, para deleite dos nossos sentidos, dos nossos ouvidos e do nosso espírito.

Um breve conselho, a humanidade fez-se não para comer alimento em manjedoura nem para a comida rápida e cheia de ingredientes de má catadura. E já agora, mais duas notas: comer vem de cum e edere, que significa alimentar-se em companhia. E não se esqueça o ditado popular, que à mesa não se envelhece, porque a conversa e o encontro significam a memória viva que nos eterniza.

“Ao domingo, depois de ouvirem a missa, cuidavam do jantar à portuguesa, d’arroz, sopa e cozido: depois, para ajudar a natureza iam dar um passeio impando o bucho grávido e estoirido. Ao lusco-fusco, as portas se trancavam, e marido e mulher, numa só alma, e numa cama só, ressonavam em sorna e doce calma, e tinham sonhos doces qual toicinho-do-céu ou pão-de-ló. Ao romper da manhã, subtil e lesta, desvelada se erguia a esposa meiga, e o almoço fazia. A xícara de chá, pão com manteiga lobrigava o marido se o olho crasso e ramelado abria, em dias festivais, em dias d’anos era a pitança mais choruda e gorda: os anjos invejavam aquela e pingue sorda que os conjuges radiosos nas festivas barricas emborcavam (…) São moda agora uns fofos vaporosos omelettes soufflés denominados, e omelettes sucrées. São etéreos de mais estes bocados, e mesmo incompatíveis c’o estomago sincero português”.  

No fundo, o sábio de Seide tinha razão – “ao pé de um bom estomago coexistiu sempre uma boa alma”…

É um problema eterno de “Coração, Cabeça e Estômago”…

Agostinho de Morais

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