Pedras no meio do caminho

XX. O impagável Abranhos

Há um fantasma, destes que cultivam a presença nestas páginas, que encanita sobremaneira Fradique, ainda que produzido na mesma oficina. É Alípio Severo Abranhos, nascido em Penafiel no Natal de 1826 (o ano da Carta Constitucional), tantas vezes esquecido na panóplia queiroziana. Acácio e Pacheco batem-no aos pontos, mas são da mesma genealogia. Será ciúme? Será apenas irritação ou alergia? É tudo. O certo é que este Abranhos nasceu tarde e com uma marca de legitimidade queiroziana algo tardia e enfraquecida, graças à recriação do filho José Maria do genial autor. Filho de um alfaiate e de uma camponesa, era sobrinho de uma tia dos Noronhas de Penafiel que o adotou. A lista de marcas deixadas pela personagem na história pátria perdem-se no horizonte e no número.

Eleito por Freixo de Espada à Cinta, em condições muito especiais, passaria dos Reformadores aos Nacionais (sem grande dificuldade, pois a essência dos dois era a mesma) e ficou conhecida uma frase lapidar, sendo ele Ministro da Marinha e Ultramar: “Moçambique situa-se na costa ocidental de África”, ignorando ingenuamente a monstruosidade que dizia. António Enes disse um dia que do Terreiro do Paço era difícil ver a lonjura colonial. Uma vez compreendida pelo Abranhos a gaffe, este retificou: “a ocidente ou oriente, a latitude não altera a substância e a justeza de minhas propostas”.

Quanto ao mais, se as questões sociais o preocupavam, logo propôs que os pobres fossem recolhidos em celas, onde lhes seriam ofertadas rações de caldo iguais às dos prisioneiros, de modo que o país tivesse melhor imagem, havendo que isolar o indigente. Mas nos Anais dos lugares seletos está a sua grande metáfora: “o povo assemelha-se a um elefante e o elefante a uma criança. Por isso, para quê combater um monstro invencível, se é tão simples iludi-lo”.

Z. Zagalo foi o mais célebre dos secretários particulares (com renovada imortalização por Artur Portela Filho). E há um mistério dificílimo de descobrir. De facto, de todos os fantasmas que vimos apenas Abranhos nunca mais foi visto por viv’alma. Só Z. Zagalo aparece, apesar de muito pouco e de modo fugidio. De Abranhos, nada. Até mesmo o monumento funerário que ainda se mantém no Cemitério dos Prazeres, apenas apresenta uma figura. E quem o conheceu assevera a pés juntos que o fácies da homenagem pétrea do escultor Craveiro que, ao contrário da de Pacheco continua bem visível, segundo as más-línguas, é o de Zagalo e não de Abranhos. Seriam eles uma e a mesma pessoa?

É evidente que o eterno secretário nega, mas, de facto, tudo leva a crer que Abranhos se tenha recusado a pousar para a posteridade, ou, se calhar, não teve tempo para o efeito, tendo pedido a seu fiel secretário que o fizesse por ele, o que realmente pode ter acontecido. E é de Alípio (ou de Z. Zagalo) esta afirmação bizarra: “Os governos democráticos conseguem tudo, com mais segurança e admiração da plebe, dizendo com doçura, por aqui se fazem favor, acreditem que é o bom caminho, assim o povo amolece na indiferença e assim podemos exercer a soberania em proveito próprio”. Os dois fantasmas aqui se apresentam como raras almas penadas.

Agostinho de Morais

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