30 Boas Razões para Portugal

(XVII) Fixação e Transporte

Portugal viveu, ao longo da sua História, um paradoxo, que foi responsável pelos sucessos e pelas limitações, pelas vantagens e pelos erros – um território europeu virado ao mar, com carências, mas com exigentes solicitações de potência média pela presença dos portugueses no mundo. Cabeça de império situada nas margens do velho continente, essas a condicionantes que obrigaram sucessivas gerações a partir – ora para a Índia, para o Oriente e para o Brasil, ora, em ocasiões diferentes, para a emigração.

Em 1415, Ceuta visou superar a falta de trigo e de ouro e entrar no comércio do Mediterrâneo. A longa costa atlântica permitiu contrariar a situação periférica, no entanto houve sempre uma tensão entre a defesa dos recursos próprios e a consideração das oportunidades nos movimentos de pessoas e das mercadorias… Já vimos os alertas de Infante D. Pedro das Sete Partidas na célebre Carta de Bruges (1426) ou as queixas de Francisco Sá de Miranda: “Não me temo de Castela, donde guerra inda não soa, / mas temo-me de Lisboa que ao cheiro desta canela o reino nos despovoa”. Conhecemos os planos do Príncipe Perfeito e de D. Manuel. Depois da Restauração, o conde da Ericeira defendeu um modelo manufatureiro, a que a descoberta do ouro do Brasil não deu continuidade. Houve, assim, plena consciência de que era preciso fixar riquezas depois de as encontrar.

Não bastaria sermos mercadores, tínhamos de ter uma base estratégica que gerisse as riquezas, assim pensou D. João II, até para que a míngua de pessoas não impedisse a criação de uma direção coerente e de uma orientação eficaz para o império. António Sérgio (1883-1969), na linha da Geração de 1870, refere-se a duas políticas nacionais. E cabe citar os fundamentais autores seiscentistas – Mendes de Vasconcelos, Severim de Faria e Ribeiro de Macedo. Em 1608, Diálogos do Sítio de Lisboa de Luís Mendes de Vasconcelos (c. 1542-1623) representam a consciência da importância da capacidade criadora da economia. O autor viveu na passagem do século XVI para o século XVII, foi Capitão das Armadas do Oriente e governador em Angola. Nesse livro – onde discutem um Filósofo, um Soldado e um Político – encontramos a exaltação das qualidades da cidade de Lisboa, sobretudo quando comparada com Madrid e, tratando-se do tempo de Filipe I, durante a monarquia dual, Sérgio diz-nos que o autor procurava convencer o rei “a mudar de Madrid para Lisboa a capital do seu império”. Combate-se ainda “o estonteamento da nossa política ultramarina, que consistiu em se perverter o objetivo comercial com as ideias de conquista”.

Luís Mendes de Vasconcelos defende a criação e a fixação, com exemplos práticos do que hoje classificaríamos como ordenamento do território, em especial para o aproveitamento agrícola nas lezírias do Tejo e na região de Lisboa. Este reformismo assenta na “política fixadora, a da produção metropolitana, com base na estabilidade do comércio do ultramar, e da sua nacionalização”; bem como num conceito de glória e heroísmo – “a glória do político e do militar, o heroísmo do servidor da pátria está em concorrer para a prosperidade dela”… Já o clérigo e teólogo, formado pela Universidade de Évora, Manuel Severim de Faria (1583-1654) subscreve, com preocupações semelhantes, Dos Remédios para a falta de Gente (1655), onde critica a prioridade bélica em detrimento do comércio e da manufatura – somando-se esse mal à falta de investimento, aos defeitos do arranjo agrário, à concentração fundiária, ao absentismo e ao despovoamento… De mais a mais, o império do Índico apresentava-se frágil por falta de organização mercantil, e por defeitos no arranjo agrário. Daí advogar a prioridade para o comércio, a indústria e as manufaturas, único modo de fixar recursos, devendo a preocupação de criar riqueza prevalecer sobre a conquista.

Só favorecendo o governo do Reino a introdução de ofícios e técnicas modernas poderia alcançar-se a independência económica da nação. O jurisconsulto e diplomata Duarte Ribeiro de Macedo (1618-1680) publicou o Discurso sobre a introdução das artes no Reino (1675). Em coerência com a sua correspondência com o Padre António Vieira e D. Francisco Manuel de Melo, o escritor considera ser fundamental a compreensão de que só haveria um meio para evitar a dependência do exterior pelas importações, e esse seria impedir que o dinheiro saísse do Reino através da criação de artes e manufaturas. A introdução de uma tal orientação evitaria o dano que fazem ao Reino o luxo e as modas; obstaria à ociosidade; tornaria o país povoado e abundante com gentes e frutos; aumentaria as rendas reais (“porque o peso que levam poucos, dividido por muitos, é mais fácil de levar e pode ser maior”); e atrairia ouro de Espanha, aproveitaria mais as colónias e daria ao porto de Lisboa, superior ao de Constantinopla, a primazia do comércio do mundo. Escrevendo na França de Colbert, Ribeiro de Macedo considerava que haveria de seguir os caminhos mercantilistas de França e Itália e que a Inglaterra começava a trilhar. Saliente-se que tal como o Padre António Vieira o diplomata defendeu a necessidade de encontrar um entendimento com judeus e cristãos-novos de modo a angariar novos meios e capacidades.

Dois outros diplomatas merecem referência pela valia dos seus escritos de orientação convergente com a de Duarte Ribeiro de Macedo – Alexandre de Gusmão (1658-1753) e D. Luís da Cunha (1662-1749). O primeiro, irmão de Bartolomeu Lourenço de Gusmão, defendeu o combate à ociosidade, o aumento da agricultura, o aproveitamento das ribeiras para navegar e regar, o estabelecimento de fábricas, o aumento da indústria e o favorecimento do comércio dentro e fora do reino. O segundo, diplomata cosmopolita, que indicou Sebastião José de Carvalho e Melo a D. José, insistiu na necessidade de dar uso positivo à propriedade agrícola e de favorecer o investimento nas artes. Tratava-se de buscar nas experiências das nações civilizadas os melhores exemplos com resultados práticos.

Quando António Sérgio publicou a sua Antologia dos Economistas Portugueses (1924), lembrou que os três autores seiscentistas “iniciaram a doutrina da política da Fixação, contra a política do Transporte; e o reformismo português, desde aí até agora, será o desenvolvimento dos princípios que defenderam nas suas obras. Em Luís Mendes de Vasconcelos é a Fixação, pela agricultura; em Severim de Faria, pela agricultura e pelas indústrias; em Ribeiro de Macedo, finalmente, são as minúcias de um programa de fomento industrial”. Logo no final do século XVII, porém, o dinheiro das minas do Brasil e mais tarde os empréstimos do constitucionalismo e as remessas dos emigrantes adiaram a realização das ideias dos reformadores. E seria de fixação tendencial a política económica de Pombal, a reconstrução de Lisboa, a reestruturação do tecido empresarial, a refundação da Universidade, as companhias do comércio e a modernização das leis. Mas o tema continua atualíssimo.

GOM

Subscreva a nossa newsletter