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(XIV) António José da Silva, «O Judeu»

Luís de Freitas Branco considerou ser António José da Silva, o Judeu (1705-1739), o verdadeiro fundador da ópera nacional. Sem ele teriam decorrido trezentos anos da nossa história do Teatro, depois de Gil Vicente até Garrett, sem uma dramaturgia digna de registo. Pode dizer-se que António José da Silva simboliza no teatro português o período que corresponde ao reinado de D. João V, em pleno ideal barroco, envolvendo a luxúria e a ostentação de uma faustosa corte, beneficiária dos lucros do ouro do Brasil. Havia um chocante contraste entre a opulência e as misérias de uma sociedade frágil, pobre e atrasada. O clero representava um influente poder dentro do Estado e a Inquisição atuava impiedosamente, perseguindo judeus e cristãos-novos. A família de António José emigrara para o Brasil desde a geração dos trisavós maternos, fugidos do Santo Ofício, por práticas judaizantes. Em 1711, António José tinha seis anos quando a sua família foi obrigada a abandonar o Rio de Janeiro na sequência do reforço da ação inquisitorial na colónia.

A família vem para Lisboa e o pai, João Mendes da Silva, exerce a sua atividade de advogado. António José estuda, provavelmente, no Colégio de Santo Antão e, em 1722, inscreve-se para estudar Leis e Cânones na Universidade de Coimbra. Em 1726, interrompe os estudos, regressando a Lisboa onde é acusado num primeiro processo inquisitorial. Também sua mãe, Lourença Coutinho, e os seus dois irmãos, André e Baltasar, são acusados de práticas judaizantes e condenados a abjuração.  Em 13 de outubro, António é preso nos Estaus e duramente torturado. Sai ao fim de dez dias, com os seus bens confiscados e condenado a pena de cárcere, hábito penitencial perpétuo e exigência de ser instruído nos mistérios da fé. Trabalha no escritório de advocacia do pai e do irmão Baltasar. Em 1733 representa no Teatro do Bairro Alto a sua primeira ópera, “A Vida do Grande D. Quixote de La Mancha e do Gordo Sancho Pança”. Morava então no Socorro, próximo do Teatro do Pátio das Arcas, que funcionava onde hoje é a rua Augusta, tendo sido fundado por Fernão Dias de La Torre cerca de 1590. O teatro ardera em 1697, mas fora reconstruído como importante pátio de comédias, cujas receitas revertiam a favor do Hospital de Todos os Santos. O teatro apaixona o homem que lida com os tabeliães e se torna o mais importante dos dramaturgos portugueses. A obra do “Judeu” tem influências evidentes da comédia espanhola, nomeadamente de Lope de Vega e Calderon de la Barca, designadamente no espírito inconformista segundo os ideais do Barroco e os cânones usados em Itália e nos palcos europeus. O artista vive o espírito do tempo segundo uma nova arte, menos retórica e mais ocupada com o deleite dos sentidos. António José da Silva escreve sobretudo em prosa, sendo que “a prosa deixara de se usar no teatro desde Sá de Miranda, Camões e António Ferreira”; inserindo a música na intriga dramática, de acordo com o modelo de transição entre a comédia espanhola e o melodrama italiano.

No Teatro do Bairro Alto, numa sala do Conde de Soure, na rua da Rosa, adaptada às lides teatrais, chamada Casa dos Bonecos, António José faz representar entre 1733 e 1739 as oito óperas que lhe são atribuídas: D. Quixote (1733), Vida de Esopo (1734), Os Encantos de Medeia (1735), Anfitrião ou Júpiter e Alcmena e O Labirinto de Creta (1736), Guerras do Alecrim e Manjerona e As Variedades de Proteu (1737), Precipício de Faetonte (1738), esta última quando o autor já se encontrava encerrado nos cárceres da Inquisição. Nas célebres Guerras, com música de António Teixeira (1707-1774), estamos perante uma ópera joco-séria, na qual dois caça-dotes, Gil Vaz e Fuas, procuram cair nas graças de duas irmãs ricas, Clóris e Nise, utilizando o criado de Gil, Semicúpio. Este, arma estratagemas para introduzir o patrão na casa da pretendida, mas acaba por se enamorar de Sevadilha, criada de Clóris. D. Lancerote, tio das meninas, deseja casá-las com o primo D. Tibúrcio. No final, desfeitos os equívocos da comédia de enganos, casam-se os namorados e Semicúpio com Sevadilha.

Em 1735, António José da Silva casa-se com Leonor Maria de Carvalho, antiga penitenciada em Valhadolid, de quem tem uma filha Lourença. As suas peças e representações obtêm grande sucesso de público e reconhecimento nos meios cultos. Em 1737 é preso com a mulher, a mãe, o irmão e a cunhada durante as cerimónias judaicas de Yom Kipur. Após um longo processo é condenado em 1739 de convicto, negativo e relapso, sendo relaxado em carne, garrotado e queimado. Em 1744, Francisco Luís Ameno publica “Teatro Cómico Português” (2 volumes) onde se incluem as oito obras de António José da Silva, sem menção de autoria. Trata-se do exemplo de quem representa a vitalidade da cultura portuguesa, impondo-se contra a cegueira da intolerância.

GOM

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