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(VIII) A Carta de Sá de Miranda

Que sentido tem num folhetim de Verão incomodarmos um poeta antigo, que repousa em Amares, e que ainda hoje nos surpreende pelo seu sentido crítico e pela chamada de atenção relativamente à questões pátrias? Falamos do bom Sá, ou seja, de Francisco Sá de Miranda (1481-1558), célebre por ter introduzido na nossa literatura o soneto e o Dolce Stil Nuovo, para quem a poesia não era uma mera ocupação de ócios, mas uma missão do maior valor humano. O poeta seria, assim, como um profeta, capaz de denunciar os vícios da sociedade, e em especial da Corte, o abandono dos campos, a hemorragia das gentes e o exagero do luxo, que tudo corrompe. Daí que se lembre a célebre carta que dirigiu a D. João III, identificando-se como o «Homem de um só parecer, / dum só rosto e d’ua fé, / d’antes quebrar que torcer / outra cousa pode ser, mas da corte homem não é.». Quando o lemos, sentimos estar no âmago de um pensamento atento e de uma língua nobre – sóbria, densa, forte, trabalhada, exigente para se fazer entender e tantas vezes necessariamente dura. Daí que a biografia literária de Sá de Miranda seja muito rica, tendo o poeta concebido as primeiras comédias clássicas portuguesas (Estrangeiros e Vilhalpandos) além das mais imaginativas criações bucólicas e pastoris. Se Gil Vicente representou a transição do medieval para o moderno, Sá de Miranda exerceu a crítica já nos novos tempos, em que o rigor da palavra correspondia à maneira clássica de fazer do reparo sério e claro motivo de melhorar o curso da história humana. Assim prenunciou Camões, Diogo Bernardes, António Ferreira, Pero Andrade Caminha, Francisco Manuel de Melo, mas também os contemporâneos Jorge de Sena, Gastão Cruz ou Ruy Belo. Tem uma preocupação ética como Mestre Gil, mas o picaresco dá lugar à sobriedade, o que significa determinação pedagógica e artística. Não cuidaremos de ler a sua riquíssima obra, mas atemo-nos à célebre carta a D. João III, bem ilustrativa de uma atitude de procura da humanidade na sua essência. Assim, oiçamos o bom Sá, na epistola que representa para a língua portuguesa o exemplo em que a palavra vai ao encontro do espírito, a justiça ao encontro da voz.

«Tudo seu remédio tem / E que assim bem o sabeis, / E ao remédio também; / Querei-los conhecer bem, / No fruto os conhecereis. / Obras, que palavras não: / Porém, Senhor, somos muitos, / E entre tanta multidão / Tresmalham-se-vos os frutos, / Que não sabeis cujos são. / Sempre foi, sempre há de ser, / Que onde uma só parte fala, / Que a outra haja de gemer: / Se um jogo a todos iguala, / As leis que devem fazer/ Do vosso nome um grão rei / Neste reino lusitano, / Se pôs esta mesma lei, / Que diz o seu pelicano / Pola lei, e pola grei. / Assim que seja aqui fim; / Tornem as práticas vivas; /Perdestes meia hora em mim, / Das que chamam sucessivas / Estes que sabem latim”. “E por muito que os reis olhem, / vão por fora mil inchaços, / que ante vós, Senhor, se encolhem, / duns gigantes de cem braços / com que dão e com que tolhem// Quem graça ante o rei alcança, / e i fala o que não deve, / (mal grande de má privança) / peçonha na fonte lança / de que toda a terra bebe”.  “Que eu vejo nos povoados / muitos dos salteadores, / com nome e rosto d’honrados; / vão quentes, andam forrados / de pele de lavradores”. “Senhor, esta vossa vara / como as mãos em que anda, é / a boa é ave mui rara… / sendo vós o que mandais / todos nos resolveremos”. 

Do que se trata é da denuncia da injustiça, importando cuidar com coerência e determinação, do lado das soluções, porque há um caminho reto a trilhar contra os salteadores que se mascaram de honrados.  E recorda a D. João, o lema do Príncipe Perfeito: “Pola Lei e Pola Grei”. Atos e não palavras, eis do que precisamos. Urge cuidar dos bons frutos e dos bons resultados. E o poeta com visão crítica exprime a confiança na justiça do rei.

GOM

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