A Vida dos Livros

“Unicórnio” a “Pentacórnio” (1951-1956)

A publicação “Unicórnio” a “Pentacórnio” (1951-1956) dirigida por José-Augusto França constituiu um marco importante na renovação do panorama cultural português num tempo de provação e ausência de liberdade de imprensa.

UMA LEMBRANÇA INESQUECÍVEL
Jamais esquecerei a tarde em que, na Biblioteca Municipal de Tomar, no Bibliotecando, em maio de 2016, José-Augusto França e Eduardo Lourenço se encontraram para debater “Os Outros e Nós”. Com o método desafiante habitual (lembremo-nos do ensaio de Unicórnio), o ensaísta de “A Nau de Ícaro” referiu aos seus ouvintes: “A Europa nunca existiu, nem sei se alguma vez existirá como ator dela mesma”. Afinal, os países que habitam este espaço comum sempre estiveram a braços com “uma espécie de guerra civil permanente, desde os Romanos, até hoje praticamente”, na medida em que cada uma das nações com maior poder, foi à vez, tentando dominar as outras para hegemonizar o continente… As ideias foram-se desfiando e chegado o ponto de J.-A. França falar usou o tom irónico, que lhe era habitual, afirmando que “nós somos sempre os outros. É algo reversível e reflexo. Contudo sendo sempre os outros nós, temos de ter muito cuidado com os outros, naturalmente, e esse cuidado nós não temos tido”. Em nome desse cuidado, lembrou que o Grémio Literário, a cujo Conselho Literário então presidia, foi a única instituição que assinalou e debateu a conquista de Lisboa pelos mouros em 713, lembrando que “a língua portuguesa é a única falada na Europa que usa todos os dias uma palavra ‘o oxalá’ (se Deus quiser), ou seja nós estamos a falar árabe sem dar por isso, e vivemos muito bem e muito pacificamente. Em suma, nós somos sempre os outros”. O diálogo que se estabeleceu nessa tarde, prolongou-se na viagem que fizemos juntos entre Tomar e Lisboa. Foi animada a conversa, entre a perplexidade pela intolerância na cena internacional e a lembrança de episódios passados, entre enganos e genuínos encontros inesperados, a ilustrar o difícil tema que nos levou de Almada Negreiros, “Português sem Mestre” até Mário de Sá-Carneiro e a Bernardo Soares, já que identidade e alteridade são palavras que alternam e coexistem sempre…

TROCA LIVRE DE IDEIAS
Quando tive a notícia de que José-Augusto França partira, veio-me à memória essa tarde inesquecível e irrepetível – a lembrança do prazer verdadeiro em conversar, como troca livre de ideias. Por isso o encontro continuará a acontecer na nossa mente. E estou também a ver uma pequena corrida surpreendente e lépida do jovial professor a atravessar Avenida Infante Santo, apesar dos 93 anos…  José-Augusto França foi um pedagogo, homem do Renascimento, acima de tudo. A sua obra é fundamental e indispensável – e sê-lo-á por muito tempo. Contudo, ao acompanharmos a sua vida muito fecunda, encontramos uma complementaridade evidente entre o académico, o ficcionista, o cidadão e o protagonista do seu tempo. Pessoalmente, muito ganhei sempre com o seu convívio e a sua amizade. E testemunhei, enquanto teve saúde, o evidente entusiamo de viver, de pensar, de abrir pistas de ação e reflexão. Sentimos intimamente o pioneirismo do Centro Nacional de Cultura, que França salvou depois de 1974, como Presidente, graças ao Mestrado de História da Arte e ao projeto delineado com Fraústo da Silva – que permitiu uma nova Fénix Renascida com Helena Vaz da Silva. Do mesmo modo, devotou ao Grémio Literário um especial apreço, solidariamente com as suas grandes referências históricas. E sentimos intensamente a destruição da última casa de Garrett – que era um exemplo puramente romântico, escolhido com muito amor pelo genial poeta. A fotografia que dele fez Fernando Lemos é uma referência marcante de uma série de qualidade internacional. É um justo reconhecimento de quem compreendeu, como poucos, o sentido da modernidade. Leia-se o texto sobre Unicórnio, etc. “Unicórnio nasceu na ‘Brasileira do Chiado’, onde muitas outras coisas nasceram ou se geraram, desde meados dos anos 10. Nos seus anos 50, foi já em fim de época, nas transformações de então da cidade, do Chiado. Em 1960 já nada lá podia nascer. Fora o Orpheu, fora o Nome de Guerra e os quadros de 1926fora a Variante de 41, de António Pedro, fora o Grupo Surrealista de 1949, já em terceira geração da modernidade pátria que então terminava. Os novos quadros de 1971, com um grande balcão de pastelaria no café encolhido, foi já um post scriptum sem recuperação possível e ainda menos o Pessoa-à-Porta, em anos 70 ou 88, de outra cidade ou não cidade. (…). Na ‘Brasileira’, então, veio a ideia do Unicórnio, por efeito do convívio com os amigos surrealistas, quando ainda, nas mesas do café, se convivia, lendo o Diário de Lisboa, engraxando os sapatos, pagando a bica com gorjeta de dois tostões para acertar a conta, e aguardando horas do elétrico para casa. Era em 1951”. Tornava-se necessário contornar a censura (“num país não-legal”, com “um capitão pequenino, reformado, de óculos”) e por isso a série intitulou-se antologia, com edição de autor, sem periodicidade e com título mutante, “como era mister, para iludir a continuidade”. Durou até 1956, até Pentacórnio. Os colaboradores mais assíduos foram, além de J.-A. F., Jorge de Sena, José Blanc de Portugal, Eduardo Lourenço e Fernando de Azevedo, em todos os números, Delfim Santos, António Pedro e Fernando Lemos em quatro, e Vespeira em três. António Sérgio escreveria no último número “Em torno do Problema da Importância dos Escritores na Sociedade Portuguesa”. O projeto terminaria com a decisão pacífica de finalizar a “empresa”, com reconhecimento de que a revista falhara. Não concordou José Régio, numa polémica bem curiosa. “Ao contrário do que é costume a posição crítica era do autor da obra e a defesa dela cabia ao seu crítico, que nela, uma vez ou outra, colaborara também, simpaticamente – não exatamente do mesmo lado de uma ideia da cultura portuguesa, mas no mesmo sítio dela”.

UM PORTUGAL ABSOLUTAMENTE MODERNO?
Poderia ser Portugal “absolutamente moderno”, na fórmula de Rimbaud? Ao menos, mereceria sê-lo. A série Unicórnio foi uma tentativa que, na apreciação do principal promotor não teve sucesso. Depois da tentativa surrealista de finais de 1940 ou da publicação do romance Natureza Morta (1949), na procura da superação do presencismo e do neorrealismo, José-Augusto França avançou nos anos cinquenta pelos caminhos de um terceiro modernismo, apesar de tudo há cinco números, que hoje merecem leitura circunstanciada, mas a paciência esgota-se. “Se o próprio relógio não satisfaz a necessidade do tempo europeu que alguém sinta, consulte-se outra máquina e vá-se à Europa consultá-la”. É o caminho que seguirá, como bolseiro do Estado francês em 1959, a trabalhar como o historiador consagrado Pierre Francastel, doutorando-se em História com a tese “Une Ville des Lumières: la Lisbonne de Pombal” (1962) e em Letras com a tese “Le Romantisme au Portugal” (1969). O ativista abriu caminho ao exemplar pedagogo. Não é possível compreender a arte e a cultura em Portugal, em diálogo com o mundo, no Pombalismo e nos séculos XIX e XX sem conhecer e estudar a obra de José-Augusto França. Lembre-se, na Fundação Calouste Gulbenkian, que tanto lhe deve, a direção exemplar da Colóquio – Artes (1971-1997), bem como da Delegação em França da instituição (1983-89). Num trabalho persistente e único de estudo e partilha, segundo uma visão larga da cultura portuguesa, para além das fronteiras físicas, buscando Portugal fora de Portugal, como Ulisses em demanda da sua Ítaca, José-Augusto França contribuiu decisivamente para a democracia como fator de modernidade. Disso não haja dúvidas. 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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