A Vida dos Livros

Uma Teoria da Democracia Complexa – Governar no Século XXI

Daniel Innerarity acaba de dar à estampa entre nós Uma Teoria da Democracia Complexa – Governar no Século XXI (Ideias de Ler, 2021), onde equaciona as questões fundamentais respeitantes aos desafios da legitimidade democrática nos dias de hoje.

DEMOCRACIA PARA TODAS AS ESTAÇÕES

A emergência inesperada da pandemia Covid-19 serviu para demonstrar como estavam enganados aqueles que entendiam que a democracia se limitaria a funcionar em épocas de prosperidade e estabilidade, devendo ser considerada incompatível com a incerteza, a complexidade e as crises. A evolução dos acontecimentos tem demonstrado que, ao contrário, o sistema mais apto a governar a complexidade é a legitimidade democrática – uma vez que assenta na diversidade e na imperfeição, considerando que a complexidade representa uma oportunidade de aprofundamento da cidadania e da governação democrática. Ao longo do desenvolvimento da crise pandémica fomos percebendo como as soluções simplistas e demagógicas tiveram consequências desastrosas na gestão de um problema tão inesperado, em que os próprios cientistas se defrontaram com dúvidas perturbadoras e em que os governos se depararam com um conjunto diversificado de fatores e soluções de consequências contraditórias. Os preconceitos, as soluções ideológicas, a recusa do método da tentativa e do erro, o dogmatismo e a sobranceria resultaram em efeitos dramáticos, com muitas vítimas, que só o método democrático pôde salvar, mercê da humildade de reconhecer que ninguém tinha solução, sendo necessário entender a governação dos povos como algo que tem de colocar a vida como prioridade, num mundo em que a informação, o conhecimento e a sabedoria têm de ser considerados. Daniel Innerarity, catedrático de Filosofia Política e Social na Universidade do País Basco, publicou em 2019 Uma Teoria da Democracia Complexa – Governar no Século XXI, imediatamente antes do início da crise pandémica, onde, com assinalável presciência, coloca-nos perante os problemas novos com que nos confrontámos a partir de 2020. A edição portuguesa acaba de ser dada à estampa pela “Ideias de Ler” (2021) e a sua leitura é indispensável, uma vez que aí se encontram as pistas essenciais ditadas pela nova emergência. De facto, o que estamos a sofrer com a pandemia corresponde a uma situação com que as democracias se vão confrontar, não só pela continuidade das situações epidémicas, relacionadas ou não com esta crise, mas também em virtude das novas situações ligadas à situação ecológica e ambiental e aos seus efeitos. De facto, para Innenarity, a complexidade pode ser um fator de democratização, uma vez que a transformação da democracia vai depender da capacidade de introduzir no processo de formação da vontade política ideias, experiências, perspetivas e inovações descentralizadas, nas quais os procedimentos hierárquicos se revelam insuficientes ou desadequados. E veja-se o que ocorre agora quanto aos desconfinamentos descentralizados e diferenciados, de modo a obter maior eficiência do combate à pandemia. Com efeito, a democracia deve ser entendida como o regime da complexidade, cultivando a discordância, protegendo a diversidade e a heterogeneidade e privilegiando a gestão da complexidade em lugar da sua repressão. De facto, só a democracia está apta a lidar com a crescente complexidade e incerteza das sociedades globais de conhecimento. “Mais democracia significa mais complexidade, e mais complexidade significa mais democracia” (Czerwick). Eis por que razão o método correto é o de considerar as deficiências do sistema corrigindo-as permanentemente, de modo que a democracia não seja insuficientemente representativa. A tentação de dar saltos no escuro com mecanismos diretos não testados e sujeitos ao espontaneísmo revela-se perigosa e negativa. E assim o futuro da democracia depende da capacidade que esta tiver de interligar a diversidade e a incerteza com o desenvolvimento de formas de gestão menos dependentes da exclusiva dimensão nacional, uma vez que os novos riscos e desafios têm a ver com a difícil complementaridade entre o local e o global. O Estado-nação não perdeu importância, mas deixou de ser o alfa e o ómega da vida política, devendo ser mediador entre os diferentes níveis de decisão – considerando a interdependência e a policentralidade, tornando-se garante ou cooperativo, transitando da hierarquia para a heterarquia, da heteronomia para a autonomia, do controlo unilateral para a compreensão do contexto plural… A subsidiariedade tanto considera a proximidade local como as soluções supranacionais, em domínios para os quais as soluções ultrapassam as fronteiras. Urge compreender que a obtenção de resultados pela democracia (ter menos mortes e internamentos, na pandemia, por exemplo) é tão essencial como fazer com que os cidadãos se sintam envolvidos e representados na vida cívica e comunitária.

OUTRO MODO DE PENSAR…

A modernidade legou-nos a ideia de prevalência da ciência mecânica, por contraponto ao meio natural, mas “as transformações da ciência contemporânea convidam-nos a considerar a possibilidade de outro modo de pensar a vida social e o seu governo, menos mecanicista, com base no modelo da complexidade biológica”. Em lugar do determinismo ou das projeções lineares, de que a ciência económica se vai libertando, importa considerar as relações e interações. Como acontece na biologia evolutiva ou na neurologia, não basta entendermos as componentes, se não estudarmos como interagem entre si. Por outro lado, importa não esquecer a causalidade circular: por exemplo, se tentamos diminuir a dívida pública com austeridade, reduzimos a atividade económica e o consumo, obtendo resultados contrários aos pretendidos no tocante ao crescimento económico e aos impostos… Daí a necessidade de uma atitude equilibrada sóbria e sustentável. Edgar Morin salienta a importância da noção de metamorfose em lugar da mera transformação. Os sistemas ecológicos tendem a apresentar “desequilíbrios estáveis” ou “harmonias discordantes” – e Ulrich Beck insistia na ideia de “modernidade reflexiva”, por contraponto a uma natureza vista como radicalmente exterior, ignorando as consequências do desenvolvimento tecnológico. A construção de uma vontade geral e a defesa do interesse comum exigem compromisso entre diferentes atores, instituições, culturas e valores. Longe da exclusão do diferente ou da mera lógica amigo/inimigo, importa considerar a administração da heterogeneidade. Daí a exigência de vários poderes, de freios e contrapesos, da mediação de corpos intermédios (Montesquieu), de uma poliarquia (Robert Dahl e Schumpeter) enquanto pluralidade de grupos que competem eleitoralmente, no contexto de uma “indeterminação final quanto ao fundamento do poder, da lei e do saber” (Claude Lefort). Assim, se uma maioria toma decisões, o certo é que a democracia impede que estas impliquem uma imposição sobre as minorias. Eis por que razão a legitimidade do voto tem de ser completada pela legitimidade do exercício, obrigando que as medidas de longo prazo devam ser consensualizadas com as minorias ou envolver maiorias qualificadas, para impedir que as alternâncias eleitorais ponham em causa as medidas duráveis. Só a democracia apresenta virtualidades que não podemos menosprezar…

Guilherme d’Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

Subscreva a nossa newsletter