A Vida dos Livros

UM LIVRO POR SEMANA

“Em certo lugar da Mancha, o nome amanhã o direi, vivia não há grandes anos um fidalgo, destes velhos fidalgos de lança em armeiro, adarga antiga, pileca à manjedoira e galgo corredor. Bons três quartos do rendimento gastava-os no comer: cozido, obrigado mais vezes a vaca do que a carneiro, com o infalível empadão de sobejos à ceia, uma fritada de ovos com miúdos e toicinho aos sábados, lentilhas às sextas, e o borracho extra uns domingos por outros. O resto ia no vestir: saio de velarte e calças de veludilho com pantufos do mesmo pano nos dias santos; a cote, saragoça, embora da mais fina”.

UM LIVRO POR SEMANA
De 11 a 17 de Dezembro de 2006


“Em certo lugar da Mancha, o nome amanhã o direi, vivia não há grandes anos um fidalgo, destes velhos fidalgos de lança em armeiro, adarga antiga, pileca à manjedoira e galgo corredor. Bons três quartos do rendimento gastava-os no comer: cozido, obrigado mais vezes a vaca do que a carneiro, com o infalível empadão de sobejos à ceia, uma fritada de ovos com miúdos e toicinho aos sábados, lentilhas às sextas, e o borracho extra uns domingos por outros. O resto ia no vestir: saio de velarte e calças de veludilho com pantufos do mesmo pano nos dias santos; a cote, saragoça, embora da mais fina”. É assim que começa o romance do Engenhoso fidalgo D. Quixote de la Mancha (na versão do nosso Aquilino)… e Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616) construiu um símbolo imorredouro não só do seu tempo, mas dos vários tempos. Erasmo de Roterdão fez o “Elogio da Loucura” (“os vulgares mortais dizem mal de mim; mas não sou tão néscia como os estultíssimos me julgam, pois ninguém é capaz como eu de divertir tantos os homens e até os deuses”) e Cervantes ilustrou e desenvolveu a exigência de liberdade, tomando por modelo um louco genial e generoso, exemplo estranho e sonhador do “espírito universal, do homem que dorme em todos nós”, no dizer de Unamuno. E o certo é que o “quixotismo” abriu horizontes, tantas vezes trágicos, a partir da crença numa ciência final e absoluta, enquanto o “sanchopancismo” nos traz de volta à realidade e nos faz cair na poeira dos caminhos. Mas onde estamos, afinal? Sempre entre os dois pólos, desejosos de ideais, mas resistindo à sua força. Ainda o mestre de Salamanca, admirador do sonho de Cervantes e de Quixote, espécie de religião laica de Espanha, gostava de citar Platão no “Ion”: “A poesia dos sábios fará sempre piedade à poesia dos loucos”. Afinal, o entusiasmo tem de saber superar a racionalidade fria e plana. “A imaginação ardente, a crença obstinada e louca, o lirismo da grandeza moral, são chamados a transformar o mundo”. Na cultura europeia, Cervantes é uma referência fundamental. Nele se encontra uma convergência de influências: a greco-latina, a judaica, a cristã e até a islâmica. Encontramos sentimento trágico, a graça, a vontade, o destino. Por isso, o único herói de cavalaria, reminiscência medieval, que se salva no altar do nosso cavaleiro é Amadis de Gaula – por causa da honra, do valor e do bem. No século de ouro, Cervantes ligou ironia e humor com o drama e a tragédia. E como diz Maria Zambrano: “D. Quixote põe-se a caminho à hora da alva. Não podia ser de outra maneira na personagem de romance em que toma figura e se torna clássico o romance ocidental; a personagem que padece de um modo exemplar o sonho da liberdade, esse sonho que numa certa hora, tão incerta, se desta no homem”. O sonho, afinal, manifesta-se em toda a sua pujança. Por isso, descobrimos o cavaleiro da ilusão, pela mão genial de Cervantes… 


Guilherme d’Oliveira Martins

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