A Vida dos Livros

UM LIVRO POR SEMANA

“O Sonho Criador” de Maria Zambrano (Assírio e Alvim, tradução de Maria João Neves) é um livro acolhedor e estimulante que se interroga com grande intensidade sobre os mistérios e sobre a importância dos sonhos na sua relação com a consciência, com o tempo, com a verdade, com a liberdade e com a criação. Maria Zambrano (1904-1991) é uma das pensadoras mais marcantes e originais de Espanha no último século, representando a herança rica e complexa de dois dos seus mestres maiores, Miguel de Unamuno e Ortega y Gasset.

UM LIVRO POR SEMANA
De 13 a 19 de Novembro de 2006


“O Sonho Criador” de Maria Zambrano (Assírio e Alvim, tradução de Maria João Neves) é um livro acolhedor e estimulante que se interroga com grande intensidade sobre os mistérios e sobre a importância dos sonhos na sua relação com a consciência, com o tempo, com a verdade, com a liberdade e com a criação. Maria Zambrano (1904-1991) é uma das pensadoras mais marcantes e originais de Espanha no último século, representando a herança rica e complexa de dois dos seus mestres maiores, Miguel de Unamuno e Ortega y Gasset. Na obra que nos deixou encontramos uma relação equilibrada e inovadora entre a inteligência e a sensibilidade, onde a pessoa humana se encontra no centro, numa convergência singularíssima entre a herança greco-latina do “sentimento trágico”, a “dignidade humana” de raiz cristã e um “espiritualismo vitalista”, no qual o método filosófico é posto ao serviço da liberdade e da responsabilidade. E a verdade é que esta obra é um hino permanente ao “despertar para a liberdade” e à procura da luminosidade de uma vida plena. “Se todo o pensamento foi precedido – diz-nos – por um sonho como sua raiz e sua matéria, o pensamento da liberdade, mais que nenhum outro, arrasta consigo o sonho da sua origem; um sonho em que o homem se apropria de algo divino que lhe foi revelado numa paixão divina e humana ao mesmo tempo. E esta apropriação do divino pelo homem, no seu sonho de liberdade, não o diviniza, o que seria um engano, um engano para a sua ânsia de ser, pois além de não ser realizável, fechar-lhe-ia as portas do propriamente humano: seria a condenação definitiva da possibilidade de ser homem; do próprio ser do homem”. O sonho torna-se fundador da vida – e Maria Zambrano invoca D. Quixote: “a sua acção é livre, é um despertar”. E há uma realidade que é revelada e que estava encoberta sob o sonho. Se Cervantes se serve de uma personagem de ficção, Proust prefere tornar-se “autor personagem”, usando a memória como matéria-prima, em busca do tempo perdido, e “deste modo chega a tocar o coração do tempo, esse inesperado instante em que se dá o que ao tempo parece faltar-lhe, a identidade. Identidade de que a atemporalidade dos sonhos é a pré-histórica e profética figuração. O enigma contido em todo o sonho”. O ser manifesta-se em sonho, onde se contem o elemento que vai despoletar a procura da verdade e a vivência da liberdade. E assim a acção proposta pelo “sonho criador” é o despertar do “fundo íntimo da pessoa”, isto é, de um “despertar transcendente”. Zambrano cita Mounier: “o tempo é a paciência de Deus”. E chegamos à tragédia: Édipo e Antígona põem em questão a relação entre destino e liberdade. “Transcender não é romper senão extrair do conflito uma verdade universalmente válida, necessária para ser revelada à consciência”. Tempo e luz estão no horizonte da condição humana. Mas esse conhecimento gera uma tensão irresolúvel ente o acessível e o fechado – bem evidente em Kafka, que nos representa um K. separado do Castelo por uma “distância infraqueável”, como o obstáculo nos sonhos de ser. “K., diante do umbral infranqueável, fica prisioneiro do seu passado, e o seu passado avança sobre ele e envolve-o como uma fatalidade em sonhos”. E o sonho torna-se uma manifestação por excelência do que somos como pessoas, se há uma suspensão do tempo e da vontade, o certo é que se criam condições para o despertar e para a acção e para a descoberta da verdade e da liberdade. No fundo, “o enigma apresentado no sonho só pode ser validamente identificado a partir da interioridade do sujeito, a partir da pessoa. A atemporalidade da psique começa deste modo a formar parte do tempo da consciência”.  


Guilherme d’Oliveira Martins

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