A Vida dos Livros

UM LIVRO POR SEMANA

Alexandre O’Neill (1924-1986) foi entre nós um dos mais dotados artífices da escrita do último século. Quando em 1990, nas comemorações do dia 10 de Junho, António Alçada Baptista promoveu publicação da obra “Poesias Completas – 1951-1986” (Imprensa Nacional – Casa da Moeda) fê-lo com a consciência plena de que homenageava um poeta que ajudou (e muito) à introspecção do carácter português.

UM LIVRO POR SEMANA
De 17 a 23 de Julho de 2006


Alexandre O’Neill (1924-1986) foi entre nós um dos mais dotados artífices da escrita do último século. Quando em 1990, nas comemorações do dia 10 de Junho, António Alçada Baptista promoveu publicação da obra “Poesias Completas – 1951-1986” (Imprensa Nacional – Casa da Moeda) fê-lo com a consciência plena de que homenageava um poeta que ajudou (e muito) à introspecção do carácter português. Uma ironia forte e subtil, o uso do escárnio e mal-dizer com linguagem de hoje concedem a O’Neill um lugar especial na poesia. Há quem o ligue ao Grupo Surrealista de Lisboa (1947), no entanto, apesar de saudações sentidas a Breton (“Defalagraste em nós na sempiterna circunstância: a pasmaceira”) e Éluard (“Cantaste a beleza proferiste a verdade / (…) Disseste o que devias dizer”), o poeta, que considerava essencial não se levar muito a sério, demarcou-se de escolas e cartilhas. E em 1951 rompeu formalmente com o surrealismo, sem deixar, porém, o apego a algumas marcas indeléveis dessa influência – “É tempo de acordar nas trevas do real / na desolada promessa / do dia verdadeiro” (Tempo de Fantasmas). A ironia mantém-se bem presente. E, em “No Reino da Dinamarca”, de 1958 (ano emblemático), vemo-lo seguir o seu próprio caminho – “Ó Cesário Verde como eu queria / Que estivesses aqui!”. Há humor e mágoa, rir e roer… “E se fossemos rir, / Rir de tudo tanto, / Que à força de rir / nos tornássemos pranto…”. E em “Abandono Vigiado”: “Teima? Que topete! / Que se julga ele / Se um tigre acabou / nesta sala em tapete?”. O’Neill perscruta o quotidiano, não como realidade plácida, mas como excesso e divertimento – como no jogo dos sinais ortográficos. A vírgula – “Quando estou mal disposta / (e estou-o muitas vezes) / mudo o sentido às frases, / complico tudo”. O ponto – “Que eu saiba / só em Éluard sou único e final”. Libertação da arte e pela arte – eis o seu programa, a que voltou sempre, conversando e desconversando, moendo e remoendo incessantemente as palavras, com recusa sistemática de uma Poesia com maiúscula, já que preferiu o retrato “à la minuta” do país em diminutivo. E na “Feira Cabisbaixa” (1965) desenha Portugal (“se fosses só três sílabas”), diferença a diferença para chegar até nós (“se fosses só o sal, o sol, o sul, / o ladino pardal, / o manso boi coloquial”…). Das doceiras de Amarante aos toureiros da Golegã, “não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço, / galo que cante a cores na minha prateleira”. Mas quem é, afinal, Portugal? “Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo, / golpe até ao osso, fome sem entretém, / perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes, / rocim engraxado, / feira cabisbaixa, / meu remorso, / meu remorso de todos nós”. Portugal magistralmente esboçado por um impressionista de génio. “País engravatado todo o ano / e a assoar-se na gravata por engano”. O’Neill impagável, olhar atento, para dentro de nós: “Subamos e desçamos a Avenida, / enquanto esperamos por uma outra / (ou pela outra) vida”…  


Guilherme d’Oliveira Martins

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