A Vida dos Livros

UM LIVRO POR SEMANA

Ao falarmos da “Crónica de D. João I” de Fernão Lopes (2 volumes, Porto, Civilização, 1945, 1949), referimos um dos grandes marcos da língua portuguesa. A vida de Fernão Lopes é um mistério. Por ironia do destino, o homem através de quem conhecemos a História da geração que o precedeu, é-nos quase desconhecido como pessoa. Não sabemos quando nasceu, mas presumimos que tenha sido nos anos da crise.

UM LIVRO POR SEMANA
De 24 a 30 de Abril de 2006


Ao falarmos da “Crónica de D. João I” de Fernão Lopes (2 volumes, Porto, Civilização, 1945, 1949), referimos um dos grandes marcos da língua portuguesa. A vida de Fernão Lopes é um mistério. Por ironia do destino, o homem através de quem conhecemos a História da geração que o precedeu, é-nos quase desconhecido como pessoa. Não sabemos quando nasceu, mas presumimos que tenha sido nos anos da crise. A sua origem era plebeia, e esse facto explica a atenção que reserva na sua escrita à “arraia miúda”. O seu nome aparece-nos pela primeira vez em 1418, como guarda-mor das escrituras da Torre do Castelo de Lisboa. Um ano depois, é escrivão dos livros de D. João I e em 1422 exerce o cargo de escrivão da puridade do Infante D. Fernando, sendo depois nomeado tabelião geral do reino. D. Duarte atribui-lhe uma tença anual vitalícia em 1434 para escrever as crónicas da história geral do reino, até D. João I. Como cronista-mor exerce funções, com zelo e competência, até 1454, altura em que, por estar “mui velho e flaco”, é aposentado. Eanes de Zurara é quem escreve a versão final da terceira parte da Crónica de D. João I. Estando F.L. com avançada idade em 1459, julga-se que morreu cerca do ano de 1460. Com o cronista, e com a sua escrita fluida e atraente, presenciamos uma sucessão de acontecimentos que anunciam uma nova era, muito diferente da Idade Média. Assistimos ao “crepúsculo” do tempo antigo, na sequência de um rumo modernizador preparado na passagem do século XIII para o século XIV no período dionisíaco. Um dos temas novos é o da legitimidade política, que deixa de ser fundada no património e no senhorio, para passar a ser ditada pelas gentes e pelo “poboo”. Desde que se fixara a fronteira do reino e que a língua comum se tornara língua oficial dos tabeliães foram abertos os caminhos do “direito de naturalidade”, por contraponto ao “direito senhorial”. E se houve divisões drásticas na sociedade portuguesa, com a alta nobreza e o alto clero a sustentarem o conceito “legitimista” e a burguesia das cidades a ansiar por um entendimento mais ligado aos povos, o certo é que a matriz legitimadora do reino (o Estado que precedeu a nação) atribuía uma forte importância aos concelhos, aliados naturais do poder real. O “direito de naturalidade” representava o anúncio de uma nova concepção. E Fernão Lopes desenvolve na “Crónica de D. João I” esse entendimento, quer na narração quer nas reflexões. Fala de “verdadeiros portugueses”, mas também de “cidadãos honrados”, de “amor da terra”, do grito “Portugal” da gente “miúda” e até de “evangelho português”. E esse entendimento leva-o a conceber a historiografia como uma procura de factos fiéis à realidade, em nome de uma causa. Lembremo-nos dos relatos do Cerco de Lisboa e da batalha de Aljubarrota. Os acontecimentos são minuciosamente descritos, numa cadeia de factos de vai culminar no sucesso da causa do Mestre. E se o cronista apresenta uma nova concepção social e política, fá-lo com o recurso originalíssimo à narrativa, demonstrando “o estofo de um dramaturgo poderoso” (A. J. Saraiva) e afirmando-se como um exímio “contador da História” (Teresa Amado)…


Guilherme d’Oliveira Martins

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