A Vida dos Livros

UM LIVRO POR SEMANA

José-Augusto França acaba de publicar uma obra que merece atenção. Falo de “Exercícios de Passamento” (Acontecimento, 2005). “Toda a gente morre de paragem do coração, mas uns morrem mais do que outros, não tanto porque da lei da morte se libertem os mais célebres, mas porque têm modos diferentes de passamento, sempre individualizados e conforme viveram, fizeram, sofreram e amaram, e também consoante a causa mortis, natural ou acidental, involuntária ou mesmo voluntária”.

UM LIVRO POR SEMANA
De 23 a 29 de Janeiro de 2006


José-Augusto França acaba de publicar uma obra que merece atenção. Falo de “Exercícios de Passamento” (Acontecimento, 2005). “Toda a gente morre de paragem do coração, mas uns morrem mais do que outros, não tanto porque da lei da morte se libertem os mais célebres, mas porque têm modos diferentes de passamento, sempre individualizados e conforme viveram, fizeram, sofreram e amaram, e também consoante a causa mortis, natural ou acidental, involuntária ou mesmo voluntária”. Os cinquenta exercícios de passamento, longe de ser depressivos, constituem oportunidade para reflectir sobre a vida. Diz-me como morreste, dir-te-ei quem foste. Eis a moral destes textos. São exercícios em que a imaginação e a realidade se encontram e que permitem perceber cada um dos retratados. Vinte cinco poetas e escritores, dez artistas, sete reis (um dos quais, D. Pedro IV, faz capa, ao lado de D. Maria de Glória e do futuro Duque de Saldanha, também apanhados na teia da obra…) e  oito políticos ou afins, eis o que encontramos. E à hora da morte como que há uma rápida revisão da vida. São, assim, cinquenta apontamentos de referência biográfica, de poder e de desgraça, de glória e de ilusão. Garrett despede-se da casa desejada. D. Pedro V pergunta: “quem havia de querer um César liberal para este povo adormecido, cego, obstinado nos erros que vinham de tão longe?”. Herculano preocupa-se com uns quantos mil pés de vinha em Vale de Lobos. D. Fernando II fala de um divertido “pequeno Portugal”. Césario pede que o deixem dormir. Fontes quase se imagina Santo António de altar. Soares dos Reis, Camilo e Antero são sacrificados na ara do talento. António Nobre volta em sonho à Torre de Anto, onde “nem uma semana lá morara”. Eça vê as tílias do jardim, que as “janelas abertas de Agosto” deixam mostrar. Mousinho de Albuquerque diz que as luvas já não lhe fazem falta. Rafael Bordalo Pinheiro, “acanichado”, pede “lume a outro ele”. Ramalho não se verga “à estupidez cava dos seus patrícios”. Mário de Sá Carneiro “não ia mais escrever ao Fernando, nem a ninguém”. Amadeo revolta-se: “a gripe espanhola, dois tios mortos já, e três primos – mas porquê ele?”. Sidónio não tem tempo de pedir senão que salvem a pátria. Gomes Leal, em delírio, diz: “Agora quero ir-me embora”. O pensamento de Junqueiro dilui-se paradoxalmente no Além desejado. Columbano pede para “irem ver-lhe as pinturas no Parlamento como acto cívico necessário”, mas impossível por causa da ditadura. Pessoa pede “não mais luz, não um palito, mas entre uma coisa e outra, os óculos…” Teixeira Gomes já pode receber as amigas que inventara, Sabina Freire ou Maria Adelaide, no lindo cemitério de Bougie. Pascoaes morre “poeta de sempre”. Almada louva a “luz, a luz tal e qual”. Salazar suspira e pensa em Santa Comba. Jorge de Sena usa a sua lucidez até ao último momento. E o autor acrescenta ainda um ignoto, cheio de ironia, ao rol, em nome da intemporalidade e do riso.  


Guilherme d’Oliveira Martins

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