A Vida dos Livros

“Um Jantar de Escritores – Seleção de Textos e Notas Epicuristas”

A obra de José Viale Moutinho (Colares Editora, 2015) é um repositório de receitas culinárias com a particularidade de contarmos com cicerones célebres da nossa literatura.

UMA REUNIÃO DE RESPEITO
Comecemos pela ilustração da capa, que merece referência. Da esquerda para a direita, temos Maria Rolim (editora da Colares), o sarcástico setecentista Tomás Pinho Brandão, Almeida Garrett (o divino), Bocage, Cesário Verde, Camilo Castelo Branco (Visconde de Correia Botelho), a quem dá a direita o prolífico José Viale Moutinho, como não poderia deixar de ser, depois seguem Fernando Pessoa, José Maria Eça de Queiroz, Júlio Dinis (escandalosamente pouco conhecido…), Mário de Sá Carneiro, António Nobre e a Ramalhal Figura. O José Quitério está a voar, e a ilustradora é Fedra Santos. Os escritores que faltam estão debaixo da mesa “entretidos com os ossinhos”. A crónica do livro é leve e feita sobre o joelho num dia de canícula. Mas o ser escrita sobre o joelho não quer dizer que não tenha sido muito pensada, pois este livro do meu querido amigo José Viale Moutinho está sempre por perto e conheço-o razoavelmente. Devo começar por dizer que o complemento natural desta obra é uma outra, essencial, de um contraparente meu, Paulo Plantier, autor de “Cozinheiro dos Cozinheiros” (1877), comerciante de livros e flores, o primeiro editor de Oliveira Martins… Lá está quase tudo o que sabemos da matéria… “Ao pé de um bom estômago coexistiu sempre uma boa alma”, disse o nosso Camilo. E conto um pequeno episódio que se passou comigo. Alguém quis-me ouvir sobe o grande memorialista Bulhão Pato e começou por me perguntar sobre as famigeradas ameijoas. De facto, a maior parte das referências a escritores gastrónomos tem a ver com Bulhão Pato, a propósito de um prato que ele não cozinhou nem era da sua especialidade. De facto, como bem se demonstra neste “Um Jantar de Escritores”, o escritor era um especialista de caça e assim é representado pelos irmãos Bordalo Pinheiro, Columbano e Rafael. Assim, temos neste precioso livrinho uma açorda à andaluza, perdizes à castelhana, arroz opulento (com codornizes e queijo parmesão) e lebre à Bulhão Pato. E se lermos com cuidado e respeitarmos as receitas verificaremos que são de comer e chorar… por mais. Mas cabe-me explicar a confusão tão comum. Um dia o grande chefe cozinheiro Mestre João da Matta, autor de “Arte da Cozinha”, do Hotel Central (do Cais do Sodré e do jantar de “Os Maias”), onde vimos pela primeira vez Maria Eduarda, quis homenagear o grande gourmet Bulhão Pato e dedicou-lhe um prazo original, que não pudesse concorrer com o homenageado; e assim nasceram as Ameijoas para Bulhão Pato! Eis uma história bem simples que gerou tamanha equívoca. Mas folheemos o livro e sigamos o plano da obra e as figuras da capa…

UMA OBRA ESSENCIAL
O precioso livro abrange: Entradas, Sopas, Pão e Boroa, Saladas e outros acompanhamentos, Peixes e mariscos, Carnes, Sobremesas, Vinhos (uns de mesa e outros), Chá e Café, Digestivos e Arroz malandro. Mas tudo começa, muito bem, pelos bolos de bacalhau da “Ilustre Casa de Ramires” e continua nos ovos com chouriço, uma pratada devorada por Cruges – acompanhada apenas por uma chávena de café pelo Carlos… António Correia de Oliveira fala-nos do verde caldo e da loira boroa. Caldo sem boroa fica solteiro… Teixeira de Vasconcelos, o célebre autor de “O Prato de Arroz Doce”, sobre a Patuleia e a Maria da Fonte, ensina-nos a fazer um Arroz à moda de Valência. E Ramalho Ortigão ensina-nos a frigir batatas: “Não! Não morrerás comigo, o doce, ó bom, ó divino segredo” do delicioso manjar das batatas fritas. “A batata fica crocante por fora; por dentro o resultado é deslumbrante: fofa, amanteigada, farinhenta, inchada, leve e mole, como um sonho!”. Camilo Castelo Branco elogia a divinal lampreia. E confessa que a sua desgraça estava “nos apetites glutões delicadíssimos, que se limitam às subtilezas do bacalhau e do caldo verde. Um perfeito sibarita…”. E sobre linguados, Camilo, que enjoava com o mar, diz: “Está hoje um sol de poeta e de formigas. Saí de casa numa sege, fui até à beira-mar, não gostei, o mar a mim nunca me deu nada que prestasse, tirando algum linguado”. Em “O Crime do Padre Amaro, o Cónego Dias achava que uma boa cabidela de galinha era de “tentar Santo Antão no deserto”. Quanto a sobremesas, Abel Salazar diz-nos que “o Minho é lambão, e inventou três classes de doces, os doces de romaria, os doces caseiros e os doces de convento. São ingénuos e simples, sorridentes, embrionários, gaiatos de formas e de ornatos de açúcar branco, de açúcar róseo, os doces de romaria, entre os quais impera, fofo, elástico, dourado, o famoso pão-de-ló, enorme, em forma de roda, encastoado em papel”… João da Ega deixou cair ao chão um embrulho de queijadas de Sintra ao cumprimentar Maria Eduarda – “todo o embaraço findou através de uma risada alegre…”. E em “Coração, Cabeça e Estomago”, lemos sobre um fantástico requeijão: “Tomásia sentou-se do outro lado, e comeu e bebeu como a filha de Labão com Jacob”. E o poeta pícaro de setecentos Tomás Pinto Brandão agradece a um amigo uma bandeja de uvas e vinho de passas (“Em bandejas, sumo gosto / Em canecas, gosto sumo”). Eugénio de Castro invoca o carácter sagrado do vinho fino, que celebrizou a cidade do Porto: “Metido nesta garrafa / Por mão sabida e prudente, / Como joia, fui passando / Pelas mãos de muita gente”… Falando de café, Camilo diz: “É preciso almoçar em Braga. Lembro-lhes que é necessário pedir no botequim café forte; não se pedindo do forte, dão-nos fraco. (…) A certeza do café forte deu-nos alma”. São as reminiscências das nossas viagens orientais… Wenceslau de Morais explica-nos como no Japão toda a gente toma chá – ricos e pobres, nobres e plebeus: – bebe-se na ocasião das refeições e a toda a hora em pequeninos goles”. Já “a cozinha de João Semana era de um caráter portuguesíssimo e eu, ainda que me valha a confissão os desagrados de alguma leitora elegante, francamente declaro que, para mim, a cozinha portuguesa é das melhores cozinhas do mundo”… Mas como poderíamos esquecer Álvaro de Campos, na heteronomia pessoana? Exatamente para distinguir as tripas e a dobrada, na diferença entre o Porto e Lisboa. “Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo, serviram-me o amor como dobrada fria. Disse delicadamente ao missionário da cozinha / Que a preferia quente, / Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria…”.

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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