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Conto de Natal

Da autoria de Guilherme d’Oliveira Martins, é o conto de Natal que a equipa do CNC partilha com todos, com os votos de um FELIZ NATAL e próspero ANO NOVO

Relógio da Cidade — Ora seja muito bem-vindo a este diálogo natalício, caro confrade! Estamos, afinal, a reeditar um velho encontro de nossos avoengos de seiscentos. Quanto tempo passou já…

Relógio da Aldeia — As minhas saudações Senhor Relógio das Chagas. Conheço-o de nome e é bem lembrada a celebridade dos sons que emite, vinda da ilustre família dos célebres sineiros de Mafra…

RC — Muito agradeço a sua simpatia! É verdade que venho dessa família tão ilustre, mas não seja modesto meu Amigo, pois a sua estirpe está cheia de pergaminhos, já que a antiguidade do sino que o alegra é bem longínqua e não menor do que a celebridade que o meu ostenta…

RA — É verdade meu Amigo, mas elogio em boca própria sabemos ser vitupério. Belas foi realmente muito honrada desde tempos imemoriais, mas hoje estamos longe dessa glória antiga. Ser Relógio das Chagas, na grande cidade de Lisboa é outra coisa, temos de reconhecer.

RC — Mas tenho de lembrar a que se deve este encontro natalício. Tem a ver com essa triste pandemia que tanto assusta os passantes. E as minhas horas tornaram-se por estes dias mais importantes que nunca. Aos fins de semana nunca o bater da uma hora da tarde teve tanta importância como agora. No princípio fiquei muito espantado quando via as pessoas desaparecerem, como que por encanto, deixando estas vielas totalmente desertas. Depois explicaram-me (eu não leio jornais, nem me explicam as leis) que, para se protegerem da doença estranha, as pessoas são obrigadas a recolher a suas casas à primeira badalada da tarde…

RA — Aconteceu-me exatamente o mesmo! Também por aqui houve esse estranho fenómeno, que eu ainda menos percebi. Devo dizer, contudo, que estou aqui há tanto tempo e já poucas coisas me surpreendem. Ainda me lembro das terríveis epidemias, mas tive muitas vezes a sorte de ter aqui muita gente da cidade que fugia à peste, e que assim se salvaram muitos, graças aos bons ares de Belas, lugar de refúgio.

RC — Amigos, como os meus amigos da Sé e das Necessidades, contaram-me isso mesmo. Mas quando da pneumónica há cem anos, houve vítimas em toda a parte. Todos sentimos os seus efeitos – e agora, vemos que se passa algo parecido. É verdade que os humanos descobriram alguns remédios e dizem-me que há uma nova vacina. Vamos, pois, desejar que este medo desapareça e que a gente deixe de ter de usar uma máscara, que eu só conhecia dos asiáticos que nos visitavam. Não entendia porque traziam aquele estranho apêndice. Mas agora já percebi.

RA — Veja bem, nós para aqui, há mais de três séculos, e estamos sempre a aprender e a ver coisas novas! Mas eu não quero lembrar coisas tristes. Tenho muito orgulho em estar aqui bem perto de onde começa o grande aqueduto das Águas Livres… E foi essa obra fantástica que ao levar água boa para beber na grande capital pôde contribuir para prevenir ou curar tantas doenças. Já ouvi por aí dizer-se que agora todos são aconselhados a lavar as mãos com frequência. Acho bem e o certo é que Belas é um lugar de águas puras…

RC — Tem o meu confrade toda a razão. Por isso é tão antiga a nossa amizade! E o grande Francisco Manuel, que nos pôs nas bocas do mundo, não por acaso criou a nossa cumplicidade. Um relógio burguês e um relógio vilão, um relógio alfacinha e um saloio…

RA — Sabe que não gosto dessa palavra. Vilão, vá que não vá, por ser palavra antiga, mas confundir o nome do tributo, que os meus fregueses tinham de pagar com a identidade da gente, parece-me abusivo.

RC — Tá, tá, já me esquecia o mau génio que tem. Também não gosto que me chamem alfacinha, que era o que os seus amigos almocreves diziam dos lisboetas, fazendo pouco de nós, por causa das alfaces plantadas nas hortas e de eles dizerem que isso era manjar de grilos.

RA — É verdade que zombámos sempre muito uns dos outros. E hoje muitos já esqueceram a origem dos chistes. Um dia, em conversas antigas de relógios falantes, houve quem lançasse – o relógio de Belas não é um belo relógio. E houve zaragata forte por isso mesmo.

RC — Hoje felizmente podemos andar a compasso, porque há hora legal (uma grande modernice), mas sobretudo porque “Diós acierta a reglar com regla tuerta” – já que não são leis ou tratados que nos acertam, mas a nossa sabedoria.

RA — Deixe que lhe conte uma história antiga, dessas que se conta nos campanários, porque aqui as paredes têm mesmo ouvidos. E tem a ver com o presépio que aqui se faz todos os anos…

RC — Tem graça que aqui também, pelo Natal, mostra-se um presépio de muitas figuras, com pastores, moleiros, lavadeiras…

RA — Deixe-me contar… Ia a dizer que o presépio tinha muitas figuras: almocreves, alfaiates, aguadeiros, e os três Magos, com ouro, incenso e mirra…

RC — Pois, aqui nas Chagas, há muito se identificam os três Magos como: Belchior, velho de setenta anos de cabelos e barbas brancas, que partiu de Ur, terra dos Caldeus; Gaspar, moço de vinte anos, robusto e bem-apessoado vindo das margens do Mar Cáspio e Baltazar, mouro de barba hirsuta com quarenta anos, partido do Golfo Pérsico na Arábia Feliz…

RA — Está-me a estragar a história. Nós aqui também temos os três Magos, com esses mesmos nomes… E numa gruta estão as santas figuras de Maria, José e o Menino Deus, aquecidos por uma vaca e um burro…

RC — Mas onde está a história. Aqui há também as mesmas figuras, certamente mais belas e vistosas que as de Belas…

RA — Não desconverse que a história é séria. Houve uma véspera de Natal, há muitos muitos anos, em que o pobre sineiro, tendo de tocar as badaladas das seis da manhã, como sempre acontecia, pois então não havia mecanismos automáticos, deixou-se dormir. Vivia ele com um sobrinho, vivo e animado nos seus dez anos, que achou estranho o atraso do tio e pôs mãos à obra…

RC — É boa, conta-se aqui história semelhante…

RA — Deixe-me acabar. Passavam dez minutos já… E o pequeno tirou-se dos seus cuidados e pé ante pé foi ao sino e arrancou seis badaladas certas…

RC — Exatamente como as minhas…

RA — As minhas foram as verdadeiras! Saltou então o sineiro em pânico de seu catre. O relógio marcava as seis e um quarto. Estava perdido. Que diria o prior que tinha de celebrar às sete para que a preparação do Natal pudesse seguir?

RC — Antes que o prior desse por isso, o nosso apressou-se a atrasar o ponteiro um quarto de hora providencial…

RA — Como sabe? Essa é a minha história!

RC — Também é minha… E assim o sineiro…

RA — Roubou tempo ao tempo… E ao passar pelo presépio, armado na Igreja, ficou capaz de jurar que o Menino Deus lhe sorriu e piscou o olho… E assim todos ganharam esse tempo, que o sono do sineiro furtou…

RC — E olhando atónitos para os seus relógios todos tiveram de os atrasar pelo mando inexorável do relógio da torre. Mas de quem foi a história? Minha ou tua?

RA — Afinal, não entendo. A culpa é de todos os relógios e de todos os sineiros.

RC — Senhor Relógio de Belas, crede bem que assim é e será.

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