Em Busca de Ideias Contemporâneas

Um caso muito especial…

Folhetim de Verão “Em Busca de Ideias Contemporâneas” – capítulo 14

Ao dobrar a idade dos cem anos Edgar Morin lembrou que algo deveria ser feito para recordar as grandes amizades que se construíram em torno de um bonito sonho, o da construção das bases de uma democracia em Portugal. Não poderia ficar esquecida a memória de quem protagonizou esse desígnio. Mais do que um projeto político, haveria que recordar os fundamentos de uma amizade sólida que o tempo evidenciou. E em conversas longas, Edgar Morin disse claramente que dois ou três casos mereciam uma recordação especial. Antes de todos, havia que destacar o exemplo de António Alçada Baptista, um jovem que aos trinta anos decidiu em nome de um ideal generoso deixar uma carreira prometedora de advogado, para abraçar a criação de uma editora e o mundo das ideias. Que melhor fazer para defender o mundo das ideias senão criar uma livraria? Muitos dos seus amigos consideraram esse gesto uma loucura, mas ninguém o demoveu, nem mesmo os dissabores vários com que se foi confrontando.

Tudo começou por uma pequena editora, inicialmente de livros jurídicos, depois houve que encontrar uma espinha dorsal. Mas um projeto desses tinha de contar com o entusiasmo de alguns jovens, e nada melhor do que mobilizar estudantes vindos da militância universitária cristã num momento especialmente difícil da vida nacional, quando o regime político de Salazar era abalado pela candidatura presidencial do General Humberto Delgado, vindo de uma carreira brilhante nas Forças Armadas, um dos esteios do Estado Novo, e pelo memorando enviado ao próprio Salazar pelo Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, recordando a Doutrina Social da Igreja que andava bem esquecida do regime e do seu timoneiro. A um tempo as Forças Armada e a Igreja Católica davam sinais de desassossego. Seria, afinal, um bom momento para agitar as águas, envolvendo os mais jovens e mobilizando quem dava sinais de querer mudar o estado de coisas. Mais do que olhar para dentro, haveria que olhar para fora e para diante. Desde o final da Grande Guerra em 1945, que a Península Ibérica faltava no espaço democrático europeu. Entretanto, João XXIII lançara o ambicioso Concílio Ecuménico Vaticano II com consequências imprevisíveis. E lançava o desafio de ir ao encontro dos sinais dos tempos, num catolicismo que desejava superar o eurocentrismo e ir para o mundo. Quando Edgar Morin, através dos amigos da revista “Esprit”, fundada por Emmanuel Mounier e agora dirigida por um antigo membro da Resistência, Jean-Marie Domenach, tem conhecimento de que algo se passa em Portugal fica alerta e rapidamente o interesse torna-se solidariedade. As ideias vão germinando, entre a utopia de um Pacto e a criação de uma revista quase gémea de “Esprit”, havia um caminho a percorrer.

Primeiro nasce o “Círculo do Humanismo Cristão”, com a força inconformista desse humanismo que punha as pessoas em primeiro lugar e que abria as portas a um ecumenismo de cristãos e não cristãos. Depois vem uma revista, com o título de “O Tempo e o Modo”, mobilizando o pensamento e a ação. Edgar Morin não esconde o entusiasmo. Encontra-se com António na Rue Jacob, na Rive Gauche parisiense, graças à hospitalidade de Domenach. Poder-se-á pensar o que queria de facto o jovem animador da Livraria Moraes. Para uns mudar o panorama político e a Igreja, para outros criar um Partido Democrata Cristão, para outros ainda mobilizar energias intelectuais para uma democracia a haver… É difícil saber-se qual o plano real do jovem António Alçada Baptista, que se fará representar anos depois como a figura bíblica de Jacob em combate com um Anjo. Dotado de uma grande capacidade de compreensão do mundo e dos sinais dos tempos, depressa percebe que não é um partido político que deseja construir. Apesar das vicissitudes editoriais, a contas com a censura e das resistências eclesiásticas (ressalvada a amizade do Cardeal Cerejeira) e do esgotamento da fortuna pessoal, são indiscutíveis as influências que vai exercendo, muito para além do que pensaria. Não terão razão os que consideram fracassado um projeto pessoal de poder global, “tendo ambicionado um alto destino, de que a sorte e, no fundo, a sua própria natureza o desviaram”, na expressão de Vasco Pulido Valente. O que António teria querido, seria “mudar o catolicismo e o país” e, em última análise, criar um partido democristão, como os que nessa época governavam o país”. Mais do que isso, Eduardo Lourenço tem razão quando atribui um papel ético e intelectual – “a salutar missão de se confessar e exorcismar por muitos”. De facto, Alçada não se reconhecia no catolicismo obsoleto do Portugal salazarista, revendo-se no personalismo de Emmanuel Mounier e no projeto de uma Igreja com genuínas preocupações sociais. E Edgar Morin afirma que testemunhou uma rápida evolução intelectual entre os seus amigos; “partindo de um catolicismo que se tornava cada vez mais social”, o que determinou uma “evolução comparável a meio século”. De facto, António fez uma revolução cultural e ainda uma “revolta de comportamento, incluindo os comportamentos amorosos, uma espécie de Maio de 68, avant la lettre” (segundo Eduardo Lourenço). Na atividade editorial, basta vermos os títulos do Círculo da Poesia, além da revista “Concilium” animada por Helena Vaz da Silva. No mundo literário, temos Jorge de Sena, Nemésio, Ramos Rosa, Alexandre O’Neill, Sophia, Ruy Belo, Pedro Tamen, Joaquim Manuel Magalhães, João Miguel Fernandes Jorge, mas ainda Nuno Bragança ou Maria Velho da Costa. Razão tem Pedro Mexia quando diz que AAB “escreveu dois livros fundamentais para qualquer pessoa que queira pensar o catolicismo português, fundou uma das revistas mais estimulantes do nosso panorama cultural e uma excelente editora e foi um bom presidente do Instituto Português do Livro”. Afinal, o lugar de António Alçada no panorama português é muito mais relevante do que parece à primeira vista. Para Edgar Morin, capitaneia a abertura de horizontes para a Europa e o mundo. O reconhecimento da importância do Brasil é uma marca de universalismo, com repercussões futuras indiscutíveis. Cultivou a liberdade como valor ético e cívico, foi um memorialista exemplar, a sua “Peregrinação Interior” é uma obra maior do ensaísmo e como cidadão e escritor foi um catalisador de energias no sentido de uma democracia moderna.

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