A Vida dos Livros

“Toda a Terra” de Ruy Belo

“Toda a Terra” de Ruy Belo (Moraes, 1976) revela-nos a força criadora do poeta, num momento importante do seu percurso criador.

FIDELIDADE À VIDA

Num ensaio célebre sobre Manuel Bandeira, publicado em “O Tempo e o Modo” (nºs 62-63, 1968), lido na Sociedade Nacional de Belas-Artes, numa homenagem ao poeta brasileiro, por sugestão de Sophia de Mello Breyner, Ruy Belo afirmou que o autor de Vou-me Embora pra Pasárgada tinha “noções muito precisas acerca da poesia e do público”. Por isso defendia “a necessidade de uma fidelidade à vida tal como ela é”, fazendo-o “pelo recurso à enumeração e pela rigorosa passagem do singular ao universal, o que deve bastar para assegurar a um texto (…) uma temperatura poética que o tempo dificilmente fará arrefecer. E o poeta bem sabia a importância do manejo e combinação das palavras encantatórias criadoras de poesia. Ao lermos esse ensaio e o outro que publicou na revista “Rumo” em 1966 compreendemos qual a ideia de Ruy Belo sobre “como um poeta se faz”. E a propósito de Manuel Bandeira e do seu carácter precursor, o poeta de Toda a Terra coloca-nos no ensaio o caminho que preconiza para que, como poeta, possa exprimir a paixão pelas palavras. Ao rever há dias o filme “Ruy Belo, Era Uma Vez”, de Nuno Costa Santos, na RTP-Memória, reencontrei a lúcida análise de António Feijó sobre a importância fundamental do contributo de Ruy Belo na poesia portuguesa do século XX, pela originalidade, inteligência e profundidade de um testemunho, que abriu inúmeras pistas para as novas gerações e para a literatura da língua plural que o português é. E, com emoção, ouvimos, mais uma vez, a lembrança de Teresa Belo, de saudosa memória, cuja generosa persistência permitiu reforçar a tomada de consciência da singularidade excecional do poeta. Se refiro os ensaios sobre Manuel Bandeira, dados à estampa em Na Senda da Poesia (1969), é para deixar claro que essa reflexão de Ruy Belo faz luz sobre o seu próprio percurso e sobre a preocupação que tinha relativamente à relação entre as palavras e a vida. Daí a invocação do poema “Os Sapos” de 1918, que constitui um exemplo significativo, verdadeiramente um pequeno manifesto, sobre a necessidade de os poetas não se deixarem prender pela moda do tempo: “Enfunando os papos / Saem da penumbra, / Aos pulos, os sapos. / A luz os deslumbra. // em ronco que aterra, / Berra o sapo-boi: / – Meu Pai foi à guerra! / – Não foi! – Foi! – Não foi!” // O sapo-tanoeiro, / Parnasiano aguado, / Diz: Meu Cancioneiro / É bem martelado. // Vede como primo / Em comer os hiatos! / Que arte! E nunca rimo / Os termos cognatos // O meu verso é bom / Frumento sem joio. / Faço rimas com consoantes de apoio…”.  Afinal, o sapo-tanoeiro, representante do parnasianismo, sacrifica a poesia às artes poéticas, reduzindo a forma a fôrmas. Mas, longe da grita, na beira do rio, o sapo-cururu (ou seja, o próprio Manuel Bandeira) soluça, transido de frio, afastado da tentação do sapo-tanoeiro. É assim que Bandeira chega à Semana de Arte Moderna de 1922, com uma vivacidade e uma força inovadora, que claramente define em “Itinerário de Pasárgada”: “em literatura a poesia está nas palavras, se faz com as palavras e não com ideias e sentimentos, muito embora, bem entendido seja por força do sentimento ou pela tensão do espírito que acodem ao poeta as combinações de palavras onde há carga de poesia”. E Ruy Belo lembra “Evocação do Recife”: “A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros / Vinha pela boca do povo na língua errada do povo / Língua certa do povo / Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil / Ao passo que nós / O que fazemos / É macaquear / A sintaxe lusíada”.

UM SÍTIO DE SILÊNCIO

Contra as fôrmas da moda parnasiana, Manuel Bandeira, atento à língua certa do povo e “industriado no convívio de Camões”, transforma defeitos em recursos e alcança “um ritmo lento, sincopado, que é de apreciar”. Eis como entendia ser importante ligar a palavra a todos quantos a usam, de modo a compreendê-la como realidade viva, sempre em mutação, para ser fiel intérprete de uma real capacidade de se fazer entender, de comunicar e de compreender os valores enraizados na vida. “Quero uma mesa e pão sobre essa mesa / na toalha de linho nódoas de vinho / quero só isso nem isso quero” – dirá o poeta em Toda a Terra. E ainda o ouviremos: “A minha vida é hoje um sítio de silêncio / a própria dor se estreme é dor emudecida / que não me traga cá notícias nenhum núncio / porque o silêncio é sinónimo da vida”… Trilhando caminho diferente de Manuel Bandeira, Ruy Belo é, no entanto, fiel ao espírito aberto e livre daquele, e procura fôlego, como fazia nos dias em que ia mar adentro em Vila do Conde perante as ondas bravias. “A mim morto no mar entre algas e corais / que notícias me dais aí da superfície / dessa única terra onde vivi / e foi minha ambição morrer pra nunca mais? / Ainda cheira a esteva por aí?”.

NÃO HÁ BEM MAIS HUMANO QUE A PALAVRA

Compreender a vida, obriga a usar as palavras certas para a dizer e interpretar – eis o que está em causa. Como o autor de Boca Bilingue afirmou numa entrevista em 1962 ao “Diário Ilustrado”: “A poesia não constitui um fenómeno isolado no contexto cultural. Poesia é fundamentalmente linguagem, e a língua, sendo em si mesma um facto de cultura, permite a fixação e a transmissão de toda a cultura. A poesia enquadra-se na arte e distingue-se das outras artes quanto ao ‘meio’ (o termo aqui, embora, claramente insuficiente, é aplicado na sua aceção vulgar) de expressão”. E é esta circunstância que a autonomiza e distingue. De facto, o poeta compreende, melhor que ninguém, que cada palavra é um infinito, “que exerce o sortilégio que o poder mágico lhe permite”. Eis o que Ruy Belo procurou no seu rápido caminho. “Não há bem mais humano do que a palavra, de tal maneira que ela até compromete na inteligência do homem toda ou quase toda a sua existência. Ela ajuda a criar, e participa da história do homem. Daí que pô-la em jogo seja movimentar o universo”. E se, para Ruy Belo, a palavra é humana, naturalmente se torna social, comprometida, responsável. Ela abre diversas relações com outras palavras e sobretudo com pessoas. Vista a esta luz, a poesia é o lugar “onde convivem umas com as outras as palavras”. E é isto que sentimos ao ler os poemas longos do autor. Teresa Belo recordava, por isso, os exercícios intermináveis que dedicava aos encontros e desencontros de palavras. Afinal, se “O Guardador de Rebanhos” veio de um só jacto; Régio confessava: “Há quanto, há quanto já que os versos me não vinham”… Foi na leitura de Homero que se educaram todos os atenienses, mas Platão preconizava a expulsão dos poetas da cidade pelo perigo que representavam. Hölderlin, se reconhecia a inocência da palavra, considerava-a o mais perigoso dos bens. “A vida não se compadece com ideologias vãs / a vida pede pouco mais que vida / Para sabedoria não existe idade / mas a felicidade existe um só momento”…

Guilherme d’Oliveira Martins

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