A Vida dos Livros

“Terra de Ninguém 1981-1995”

Catálogo da Exposição individual realizada em 1996 na Fundação C. Gulbenkian, dedicada a Gaëtan, com textos de Jorge Molder e Manuel de Castro Caldas, além da biografia e de bibliografia – onde se reconhece a originalidade e a força da obra do autor que agora nos deixou.

UM TEMPO QUE EVOLUI DEPRESSA
Quando traduziu “O Tempo Envelhece Depressa” de António Tabucchi, Gaëtan deixou a expressão exata de um percurso rico e multifacetado, no qual sempre foi um interrogador: o tempo dos acontecimentos que cada um vive ou está a viver confronta-se permanentemente com o tempo da memória ou da consciência. E, de algum modo, a atitude que o artista assume na sua criação pressupõe este confronto. Não se pense, pois, que a autorrepresentação repetida ao longo de uma obra muito rica significou uma preocupação consigo próprio. Não. A cada passo encontramos o seu rosto como espelho de outros rostos e modo de compreender plenamente que é na relação com os outros que se manifesta plenamente a dignidade humana. Há, pois, a presença do rosto como espelho das almas. Os outros são sempre o princípio e a continuação de nós mesmos, a outra metade… Como disse João Pinharanda: estamos perante “máscaras que Gaëtan coloca, não sobre o seu rosto, mas em frente do seu rosto? De qualquer maneira, são um Outro”. E quando lemos Emmanuel Lévinas sobre a importância do rosto, compreendemos melhor o significado da obra de Gaëtan. De facto, é a responsabilidade para com os outros, tão importante para o filósofo francês, que se manifesta. E a ligação entre o pensamento, a literatura e a representação gráfica e artística é decisiva para Gaëtan já que aí encontramos referências desde o Padre António Vieira até Truffaut ou Jacques Demy, nos vários domínios em que trabalhou, em especial o da edição, uma vez que trabalhou na extinta Ulisseia e assinara traduções de autores, além de Tabbuchi, como Marguerite Yourcenar, Italo Calvino ou Bruno Zevi. 

UM MARCO DECISIVO… 
Não podemos, de facto, esquecer a exposição antológica “Terra de Ninguém”, que a Fundação C. Gulbenkian dedicou a Gaëtan, em 1996, assim como o facto de ter incluído o seu trabalho, “inúmeras vezes”, em mostras permanentes da coleção e em exposições coletivas, “tornando assídua a força inquieta da personalidade culta e delicada” do artista. Uma força que deve destacar-se na sua obra, mas também quando “dirigia um sorriso, uma observação, uma vontade genuína de empatia”. Em 1981, Gaëtan centrou-se no desenho, que passou a tratar de modo continuado, aprofundando as variações sobre o mesmo tema, que era o seu rosto, como pretexto de trabalho. Olhando a obra multifacetada, refira-se que participou na XXI Bienal de Paris (1980), na mostra “Depois do Modernismo”, na Sociedade Nacional de Belas-Artes, em Lisboa (1983), em “Tríptico”, no Museum van het Hedendaagse Kunst, em Gent (1991), na Bélgica, em “Drawing Towards a Distant Shore: Selections from Portugal”, no The Drawing Center, em Nova Iorque (1994). Expôs ainda no Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado, em Lisboa, em 2004, sendo reconhecido como “um dos artistas portugueses que mais recorreram ao desenho, praticando-o de forma quase exclusiva”, lê-se na apresentação do Museu de Serralves. “Apostado em expulsar da sua prática quaisquer tiques de academismo, cedo decidiu que, sendo destro, passaria a desenhar apenas com a mão esquerda. “Esta recorrência ao seu rosto”, como material de base, foi já descrita como “uma arte da fuga, composta de variações sobre o mesmo tema”. “Os desenhos em que Gaëtan se retrata, e onde surgem pequenas mudanças mais ou menos percetíveis da sua face e do seu corpo (…) têm servido para eleger o tempo e a memória como os verdadeiros temas do seu trabalho”. Daí a ligação com a reflexão de António Tabbuchi em “O Tempo Envelhece Depressa”. Saliente-se ainda que a Fundação Calouste Gulbenkian disponibiliza ‘online’ a reprodução de “Agnus Dei (olhos castanhos, camisa aberta)”, uma das obras de Gaëtan, da sua coleção, assim como a série “Arte de Fuga”. Gaëtan está representado em coleções públicas e privadas, nomeadamente da Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação Luso-Americana, Caixa Geral de Depósitos, do Ministério da Cultura, da Fundação Carmona e Costa, do Ar.Co – Centro de Arte e Comunicação Visual, em Lisboa, bem como no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto ou no Museu de Arte Contemporânea, no Funchal, entre outras instituições. Gaëtan estava a preparar uma exposição individual para a Fundação Carmona e Costa, em Lisboa, que esperamos poder ver realizada.

UM CASO ESPECIAL
Ao lado de Helena Almeida e Jorge Molder, Gaëtan apresenta a especificidade da representação de si mesmo como interpretação do mundo e como projeção do mesmo. Segundo a socióloga Anabela da Conceição Pereira, em “O Rosto da Máscara” (2013): “A singularidade, como observado, pode ser autoral ou biográfica. Embora, a singularidade exceda a autoria em muitos aspetos, dificilmente, um autor pode ser separado da sua corporalidade/identidade. Não há, por exemplo, autor sem um corpo que lhe corresponda. Contudo este (autor) continua a ser apenas um dos papéis desempenhados pelo ator (artista), ou na formulação de Foucault (1971) uma das funções sujeito. E, o reconhecimento é ao mesmo tempo singular (casos típicos) e social/artístico ou simbólico (representativos). As duas dimensões requerem formas de exercer o poder, como a criatividade e de o manter (durabilidade) como a legitimação, que pode ser intrínseca (qualidade da obra, originalidade, agência) ou atribuída (redes de reconhecimento, mediadores, mercado, etc.)”. De facto, olhando as diferenças e as aproximações entre Helena Almeida, Jorge Molder e Gaëtan percebemos a importância da perspetiva assumida pelos artistas, na qual é o diálogo com o mundo e a vida que está em causa – percebendo-se que a tensão especial assumida por Gaëtan “contra mundum” constitui um modo próprio de afirmação da humanidade como ato de sobrevivência.

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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