A Vida dos Livros

“Sylvie e Bruno” de Lewis Carroll

“Sylvie e Bruno”, de Lewis Carroll, publicado em 1889-93, (trad. portuguesa, Relógio d’Água, 2003) foi o último e o menos conhecido dos livros do autor de “Alice no País das Maravilhas”, mas talvez o mais fascinante…

LITERATURA E ECONOMIA
A história tem todos os ingredientes conhecidos de Carroll e é protagonizado por duas crianças e pelas suas inesperadas reflexões. O autor explica no prefácio o que o anima nesta obra. “Uma vez que percebamos qual é o verdadeiro objetivo na vida – que não é prazer, nem conhecimento, nem sequer a fama(…) – mas que é o desenvolvimento do caráter, a subida a um mais elevado, mais nobre, mais puro estandarte, a construção do homem perfeito – e então, enquanto sentirmos que isso continua, e vai (confiamos) para sempre continuar, a morte não tem para nós nenhum terror; não é uma sombra, mas uma luz; não é um fim, mas um começo!”. Recordamos a obra, a propósito da relação entre Literatura e Economia invocada no último ensaio de Lord Maynard Keynes no livro, já por nós referido, “Ensaios em Persuasão” (Imprensa da Universidade de Lisboa, 2018) – “Possibilidades Económicas para os nossos netos”… Lorde Keynes, o maior economista do século XX e um dos grandes génios de sempre, refletiu sobre a literatura e a economia no referido ensaio sobre o futuro, no qual chama à colação Lewis Carroll, lembrando o negócio que a Rainha Branca fez com Alice sobre uma compota, mas também o estranho entendimento de um Professor e de um Alfaiate relatado em “Sylvie e Bruno”… E se falamos dessa relação, devemos começar (antes de tudo) por ler o Sermão da Terceira Quarta Feira da Quaresma, de 1669, do nosso Padre António Vieira para percebermos a importância do fenómeno económico, no que às letras escritas diz respeito. Afinal, a economia tem a ver com a “regra da casa” e com o modo como as necessidades humanas são satisfeitas. Eis por que estamos na essência da literatura. E cite-se a passagem de Vieira, em que num subtil jogo de palavras relaciona a adequação entre a utilidade dos bens e as responsabilidades de cada qual. “Quem fez o que devia devia o que fez e ninguém espera paga de pagar o que deve. Se servi, se pelejei, se trabalhei, se venci, fiz o que me devia a mim mesmo; e quem se desempenha de tamanhas dívidas não há de esperar outra paga”. Entre a obrigação e o direito, entre o dever e a paga, entre o serviço e a responsabilidade, temos a essência do que hoje designamos como sustentabilidade – que é a palavra tecnocrática para exprimir o que é natura, enquanto equilíbrio entre a necessidade e o custo.

PROCURA DE EQUILÍBRIO
A economia é exatamente a procura desse equilíbrio – que, mais do que a riqueza, obriga à criação de valor. E como o que tem mais valor é o que não tem preço, estamos na essência das Humanidades, da comunicação entre as pessoas e das Artes como elementos criadores por excelência. Por isso, o Padre Vieira diz-nos que “quem fez o que devia devia o que fez” – do mesmo modo que “ninguém espera paga de pagar o que deve” O barroco jogo de palavras vem exprimir uma ordem simples do que é a capacidade criadora. Pagar o que cada um deve, fazer o que cada um pode, é no fundo, representar a vida como uma relação permanente de cada um com o outro e de todos nas relações que estabelecem entre si. Voltando a Keynes, este lembrava que Alice não gostava da compota que a Rainha lhe queria dar. Mas esta descobriu o estratagema para que a compota fosse recebida, apenas como um valor futuro. De facto, o pensamento económico comporta sempre consideração sobre o futuro. “O homem ‘determinado’, dizia Maynard, está sempre a tentar garantir uma imortalidade falsa e ilusória para os seus atos, empurrando o seu interesse por eles para a frente no tempo”. Eis a chave da narrativa: ligar o tempo presente e o passado ao futuro – como faz Xerazade nas “Mil e Uma Noites”. O que importa para Xerazade é conseguir mais uma noite de vida, estendendo as possibilidades da existência para além do imediato. E estamos aí na essência da narrativa e da literatura. Que é a literatura senão a criação de valor pela compreensão do tempo e da vida. O “homo economicus” de Keynes, que ele considera ‘determinado’ – “não gosta do seu gato, mas dos filhos do seu gato; bem, na verdade, nem dos filhos do seu gato, mas apenas dos filhos dos filhos do seu gato, e assim sucessivamente para todo o sempre até ao fim do reino dos gatos”… E regressando a Lewis Carroll. Para a Rainha “compota não é compota, a não ser que se trate de um caso de compota amanhã: nunca compota hoje”. Como Alice não gosta de compota, a Rainha oferece dois dinheiros por semana e compota dia sim, dia não. Portanto, falamos de compota amanhã ou de compota ontem, mas nunca de compota hoje. E como hoje não é nem ontem nem amanhã, nem sim, nem não, hoje é sempre hoje – nunca há compota hoje. E assim se cria a ficção. Do mesmo modo, como o paradoxo de Zenão, no romance “Sylvie e Bruno”, o alfaiate nunca vai receber a dívida do professor porque o montante da dívida vai sempre duplicar em cada ano – até morrer. E ele vai esperar, porque vale sempre a pena esperar mais um ano para obter o dobro do dinheiro. A lógica, a economia e a literatura digladiam-se e têm sempre um amanhã, como Xerazade e o professor ardentemente desejam, iludindo o alfaiate e o Sultão…

QUE OPORTUNIDADE?
Isabel I de Inglaterra talvez não se tenha apercebido de tudo quando investiu na expedição de Francis Drake da “Corça Dourada”, mas tomou a decisão certa. De facto, cada libra que Drake trouxe para casa em 1580, transformou-se hoje em 100 mil libras, pelo poder dos juros compostos. Mas será que o futuro repetirá o passado? O tempo nunca se repete – e a ilusão do alfaiate, se é a fonte da literatura, vai deparar-se com mil fatores complexos e aleatórios. “O ritmo a que poderemos alcançar (…) o destino da felicidade económica será definido (diz Keynes) por quatro elementos: a nossa capacidade de controlar a população, a nossa resolução de evitar guerras e conflitos internos, a nossa disponibilidade para confiar à ciência a orientação das questões que são do domínio da ciência, e a taxa de acumulação fixada pela margem entre a produção e o consumo. Destes quatro elementos, o último cuidará facilmente de si mesmo, se os três primeiros forem cumpridos”. E eis aqui a chave de todos os mistérios. É que apenas a imaginação e a literatura, por um lado, a inteligência e a capacidade de sermos prudentes a encarar o futuro, por outro, poderão permitir que um destino de felicidade não se torne uma realidade vã…  

Guilherme d’Oliveira Martins

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