A Vida dos Livros

“Sétimo dia” de Daniel Faria

Ao assinalar os cinquenta anos do nascimento de Daniel Faria, a Assírio e Alvim acaba de publicar “Sétimo Dia” (2021), resultado de incursões ao espólio recolhido no mosteiro de Singeverga, onde foi encontrado um conjunto de catorze folhas com textos inéditos.

POETA MÍSTICO

Foi Eduardo Prado Coelho quem me chamou a atenção para a importância da poesia de Daniel Faria (1971-1999) e foi então que li, em 2002, os três primeiros livros, editados pela Fundação Manuel Leão, graças ao apoio do então Padre Carlos Moreira Azevedo, segundo o corpus definido pelo próprio poeta desaparecido: Explicação das Árvores e de outros Animais; Homens que são como Lugares mal situados e Dos Líquidos. É certo que este último volume foi publicado a título póstumo, mas foi deixado globalmente acabado, como obra de fecho desse conjunto. Ou seja, pouco depois da sua morte prematura e inesperada, pudémos dispor de uma prova concludente relativa ao valor do poeta e à importância da sua promessa. «Não sabemos como tencionaria Daniel Faria prosseguir o “Sétimo Dia” ou sequer se teria encarado em algum momento a hipótese de concluí-lo; interrogamo-nos, caso tivesse continuado, que lugar ocuparia cada homem nos dois dias em falta», escreveu Francisco Saraiva Fino no texto que abre o volume. Apenas sabemos da boca do próprio poeta que ele tinha a intenção de reconhecer Cristo como “lugar mal situado”, devendo ser compreendido pela humanidade, até pela dificuldade em encontrar um lugar onde “reclinar a cabeça”. No fundo, tratar-se-ia de fazer da arte poética uma procura do lugar de encontro entre a imanência e a transcendência. «Em “Sétimo dia”, cinco homens repartem perspetivas sobre a ideia de ocupação e coincidem no desejo de alcançar uma certa ideia de existência transcendente sem depor a medida humana». E cada voz é o anunciar de um degrau no caminho do reencontro com a palavra poética na expressão tendo em consideração a “fé inabalável no mistério que inclina / Os homens para dentro” e na representação das depurações da semente na difícil ascensão para a vida do espírito.»  Deste modo, o poeta caminha na busca de um lugar, não como certeza fechada, mas como: “Homens que são como casas saqueadas / Que são como sítios fora dos mapas / Como pedras fora do chão / Como crianças órfãs / Como homens sem fuso horário / Homens agitados sem bússola onde repousem (…) / Porque a sua força é para fora e a sua espera / É a fé inabalável no mistério que inclina / Os homens para dentro / Não os levantemos / Nem nos sentemos ao lado deles. Sentemo-nos / No lado oposto, onde eles podem vir para erguer-nos / A qualquer instante». Com efeito, há algo por desvendar, nesse texto incompleto agora divulgado. Apenas podemos reler o que o poeta nos deixou. Se, de facto, há um mistério que se manterá eternamente, podemos sentir a inquietação manifestada… «Agora, quando telefonar de novo (diz Daniel Faria), vou deixar no atendedor de chamadas uma passagem bíblica. Há aqui uma de que gosto por demais: “Ao descer da montanha, seguiam-no multidões numerosas, quando um leproso de repente se aproximou e se prostrou diante dele dizendo: ‘Senhor, se queres, tens poder para purificar-me’. Ele estendeu a mão e, tocando-o, disse: ‘Eu quero, sê purificado’ E imediatamente ele ficou curado.” E Jesus disse, “Eu quero”… Eu nunca ouvi nada com mais luz. Eu nem consigo imaginar, sem que me aumente a febre, esse homem a correr por entre a multidão, esse homem a dizer se queres e Jesus a dizer eu quero… Eu quero… eu quero… eu nunca tinha dito nada assim.»

UM PERCURSO MUITO FUGAZ

Daniel Faria nasceu em Baltar, Paredes, a 10 de abril de 1971. Frequentou no Porto o curso de Teologia na Universidade Católica Portuguesa – onde se licenciou em 1996. No Seminário e na Faculdade de Teologia demonstrou uma forte inclinação poética, estabelecendo um diálogo com a criação contemporânea. Também se diplomou em Estudos Portugueses na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Simultaneamente com a sua fecunda criação artística, a opção monástica torna-se evidente. A partir de 1990, colabora com a paróquia de Santa Marinha de Fornos, Marco de Canaveses, onde demonstra uma capacidade excecional para a animação cultural e um grande potencial de sensibilidade para o teatro, encenando, com recursos limitados, As Artimanhas de Scapin de Molière e o Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente. Faleceu tragicamente a 9 de junho de 1999, quando estava prestes a concluir o noviciado no Mosteiro Beneditino de Singeverga, em resultado de uma queda. Como lembra Alexandra Lucas Coelho, num texto fundamental, que corresponde a um retrato fiel de Daniel Faria: «Sophia de Mello Breyner Andresen foi, para ele, o princípio da poesia. E quando chegou a vez de Sophia o ler, disse: “Versos que põem o mistério a ressoar em redor de nós.” Essa é a síntese, tudo o que importa. É da poesia que partimos, mesmo quando vamos de casa em casa, à volta da vida. Para saber um pouco mais, para voltar a não saber. Vale só por isto, a aproximação a uma biografia.

UM ROSTO QUE HÁ DE VIR

Quando lhe pediram um autorretrato, Daniel Faria escreveu que era “um rosto que há de vir”. E assim será, para o leitor dos poemas. Acreditamos que na poesia portuguesa dos últimos 20 anos poucos tenham vindo à luz assim, com um impacto de pedra». Nesse testemunho recolhido no jornal Público. Um colega recorda: “O Daniel tinha sempre projetos fantásticos, queria ler as obras completas de Shakespeare… O Rilke, na tradução do Paulo Quintela, era fundamental para ele, como o Herberto. E depois Luiza Neto Jorge, Eugénio, Ramos Rosa, Sophia, Ruy Belo, Lorca. Foi com ele que conhecemos Drummond, Guimarães Rosa…” O poeta empenhou-se na ida de Eugénio de Andrade ao seminário. Foi um risco, mas o resultado foi muito bom: Daniel Faria “ficou exausto, havia oposições dentro do seminário, isso angustiou-o imenso. Depois correu muito bem, o Eugénio só não entrou na capela, lembro-me que se admirou por jogarmos futebol sem batina…” E Eugénio de Andrade resumiu essa inédita aventura como “uma tarde divertidíssima”. (cf. Público, 14.6.2001). A memória de Daniel Faria foi-se consolidando com o andar do tempo. Mas o seu prematuro desaparecimento teve dois efeitos contraditórios: por um lado, atrasou o reconhecimento da importância da sua obra; e, por outro, permitiu que, finalmente, possamos encontrar a sua voz, como uma das mais significativas da contemporaneidade.

Guilherme d’Oliveira Martins

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