A Vida dos Livros

Santo António de Lisboa

Frei Henrique Pinto Rema, O.F.M., foi quem permitiu ao mundo conhecer melhor Santo António de Lisboa (c.1195-1231), proclamado Doutor da Igreja Universal, através da Carta Apostólica do Papa Pio XII – «Exulta Lusitania Felix». Na semana em que celebramos 789 anos da morte do Santo, recordamos o labor extraordinário do seu biógrafo.

DOUTOR DA IGREJA
Não há palavras para agradecer o trabalho do Padre Pinto Rema. Sobre Santo António falamos da personalidade que levou mais longe a cultura portuguesa – ainda que, infelizmente, a sua obra seja pouco conhecida, apesar da sua riqueza. A cultura erudita ignorou a figura de Santo António de Lisboa durante muitos séculos, esquecendo a riqueza do seu pensamento e o papel fundamental que desempenhou no franciscanismo. O ano de 1946 e a proclamação do Santo de Lisboa e de Pádua como Doutor da Igreja foi um marco fundamental para lançar luz sobre a sua figura. Contudo, não foram portugueses os pioneiros na descoberta de tão importante figura da cultura europeia. Foram Cantini, Scaramuzzi e Heerinkx que começaram a dar uma especial atenção à obra deste português que se tornou elemento crucial na organização da Ordem dos Frades Menores, por indicação expressa de S. Francisco de Assis. De facto, estamos perante o prenúncio do papel que irá ser desempenhado na história da Ordem dos Frades Menores por S. Boaventura – o grande teólogo. De facto, muitos dos temas aprofundados mais tarde são indicados muito cedo nos Sermões do português. Falando ainda de Santo António, anote-se que a primeira impressão dos Sermões coube ao labor de Iadoco Badio Ascensio, em 1520. Há, no entanto um contraste entre a grande popularidade do taumaturgo, pela enorme fama granjeada em Itália, em Portugal e por toda a Europa, e o conhecimento da sua obra e da sua importância. Aliás, só em 1970 surgiu em português a primeira tradução integral da sua obra, graças à iniciativa e à persistência do Padre Henrique Pinto Rema, O.F.M.. Apesar de tardiamente, encontramos entre os portugueses, alguma atenção relativamente recente – João Ameal, Padre Domingos Maurício, S.J., Joaquim de Carvalho, Sousa Monteiro, mas sobretudo Francisco da Gama Caeiro e Maria Cândida Monteiro Pacheco (autora de «Santo António de Lisboa – A Águia e a Treva», INCM, 1986), além de Pinto Rema. Apesar de uma tão pouco compreensível desatenção, não há dúvidas de que Frei António é uma referência indiscutível na afirmação da cultura portuguesa desde muito cedo depois da Reconquista cristã e da criação do reino independente. Com razão, Jaime Cortesão refere o papel fundamental do franciscanismo na História da gesta portuguesa. Outros autores insistem nesse ponto, invocando expressamente o papel desempenhado por Frei António, como Agostinho da Silva e António Quadros. 

DE AGOSTINHO A FRADE MENOR
Fernando Martins, também conhecido como Fernando de Bulhões, nasceu em Lisboa, onde iniciou a sua formação com os Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, no Convento de S. Vicente de Fora, no qual esteve dois anos incompletos, partindo depois para Santa Cruz de Coimbra, onde estudou na mesma Ordem durante cerca de oito a nove anos. Fazia-se sentir a decisiva influência do primeiro Prior, S. Teotónio, braço direito do nosso primeiro rei. O prestígio académico de Coimbra precedeu, assim, o funcionamento do Estudo Geral, podendo dizer-se que a qualidade reconhecida ao futuro santo português é a demonstração da grande pertinência do ensino ministrado. Nesta fase da formação, notamos um especial apego à Regra de Santo Agostinho, a partir de três princípios: obediência, humildade e caridade. Todavia, esta sólida e completa formação teológica não vai impedir que espiritualmente Fernando se vá aproximando da força inovadora das novas ordens mendicantes, através de uma mística centrada na pobreza, o que o levará de Santa Cruz até ao eremitério dos Olivais, ainda em Coimbra, sob a nítida influência do «Poverello» e da trágica memória dos mártires de Marrocos, apesar de adotar o exemplo de Santo Antão. E assim encontramos a vasta cultura agostiniana transmutada para o ideal franciscano, o que leva o agora frei António até Itália. Quando S. Francisco de Assis conhece o português e verifica qual é o seu carisma e a solidez dos seus conhecimentos, incumbe-o do ensino da Teologia aos frades menores – numa carta fundamental, que a moderna historiografia considera autêntica. Estamos perante uma ligação teológica da maior importância, centrada no agostinianismo, que articula intelectualismo e misticismo no entendimento da Teologia como ciência prática – acentuando o papel da vontade e a necessária articulação de uma sensibilidade claramente aberta ao mundo e à singularidade pessoal, num horizonte global. Nesta perspetiva, o pregador afirma-se com um indiscutível carisma, que S. Francisco considera ser fundamental para a afirmação e consolidação dos Frades Menores, usando o método da pregação em que os dominicanos se haviam celebrizado e diferenciado. Quando nos confrontamos com o magistério de Frei António, verificamos serem os «Sermões Dominicais e Festivos» aqueles que constituem o núcleo autêntico de uma notável produção.

O OLHAR DO CORAÇÃO…
O que caracteriza a criação de Frei António? Textos impregnados de citações bíblicas, pressupondo um conhecimento exaustivo das Escrituras e uma memória prodigiosa e invulgar, capaz de garantir a sua articulação no sentido de uma pregação motivadora. E os autores citados confirmam e reforçam a solidez da fundamentação: Santo Agostinho, S. Bernardo, S. Hugo, Ricardo de S. Vítor, além de Orígenes e Gregório de Nissa. O naturalismo e o humanismo encontram-se numa «síntese dinâmica» entre a influência do autor de «Confissões» e a vocação do cultor de uma fraternidade assente na pobreza e na ligação à Natureza. É a edificação das Almas que está em causa. De entre os temas místicos, destacam-se o sentido da humildade, a discrição, a sublevação e a alienação, bem como os das asas, do voo da alma, a transmutação dos sentidos espirituais, o significado do «oculus cordis» (o olhar do coração), do «intuitus», e sobretudo a articulação mística da nuvem, da treva e da noite, num sentido que aproxima Santo António da mística peninsular de Santa Teresa de Jesus e de S. João da Cruz. Diz-nos o franciscano: «o ferreiro, assim chamado por fazer ferro, é o pregador da Santa Igreja, que fabrica armas espirituais. Tem de sentar-se junto da bigorna, que é o estudo e o exercício da Sagrada Escritura, a fim de se exercitar naquilo que prega… Também os pregadores devem primeiro exercitar-se no ar da contemplação com o desejo da felicidade celeste, para depois mais avidamente serem capazes de alimentar-se a si e aos outros com o pão da palavra de Deus». Nesta passagem, é o método de Frei António que surge definido, tendo suscitado o completo apoio de Francisco de Assis. E a ideia surge reforçada e clarificada: «Que alegria maior pode existir no espírito do homem do que estar diante dEle, pelo qual e no qual tudo o que existe verdadeiramente existe, sem o qual tudo o que parece existir nada é, e tudo o que abunda é pobreza?». Aqui encontramos a chave da originalidade franciscana – na procura da dignidade pessoal, no sentido da fraternidade, na troca de dons, na vivência espiritual da pobreza, na compreensão do outro, na procura de tudo o que a irmã Natureza tem para nos dar e nós para lhe atribuir… Mas os Sermões de Santo António, longe da abstração, contêm um voz severa e crítica contra os falsos profetas, os hipócritas, os padres avarentos, os prepotentes, os ladrões, os luxuriosos, os bispos indignos, os monges que fazem do deserto um palácio, do claustro um castelo, da solidão uma corte real – e ainda os leigos presos de todos os vícios… Sem eufemismos, Frei António põe cada um perante as suas responsabilidades, exigindo aos cristãos que saibam dar o exemplo… Frei Henrique Pinto Rema revelou-nos esta preciosidade!  Bem haja!  


Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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