A Vida dos Livros

Relendo “Portugal” de Miguel Torga

Torga, discípulo de Cervantes e de Unamuno, definiu Portugal como um ponto de encontro entre a vontade, o mar e a insatisfação. A leitura da sua obra permite entendermo-nos nas nossas contradições e nos nossos anseios.

CADINHO DE VÁRIAS INFLUÊNCIAS

Portugal é um país difícil de entender. O cadinho de várias influências apresenta-nos elementos contraditórios. Mas há fatores que são permanentes e definem uma identidade que começa no querer, continua na omnipresença do mar e pressupõe uma luta constante. Lembremo-nos da saga dos poveiros, com o negro do luto das viúvas e dos órfãos nas praias atlânticas ou do combate contra a adversidade do meio em Trás-os-Montes, no Douro ou no Alentejo. Eduardo Lourenço e José Mattoso lembram que “uma das descobertas mais simples e irrecusáveis do após 25 de Abril é que Portugal é um país como os outros. Sem missão providencial, sem Quinto Império, sem realizações espetaculares, sem lugar especial no mundo, apesar dos Descobrimentos”. Isto significa, porém, que dependemos da nossa responsabilidade, do nosso querer e do saber pensar e fazer. Assim chegámos aqui. Precisamos uns dos outros. E temos de saber planear o futuro, partindo do presente, e avaliar os resultados que somos capazes de obter. Sempre que preparámos o futuro, ganhámos. Ao Deus dará perdemos e agravámos o nosso atraso, que não é uma fatalidade. O mérito não é um mito, só funciona quando resulta do reconhecimento das diferenças e da dignidade de cada um. Miguel Torga foi tantas vezes duro na sua apreciação de quem somos. Sabia do que falava e que nada se consegue de ânimo leve ou de ilusão. O desencanto assalta-nos tantas vezes, e o lirismo poético é apimentado com o picaresco e o maldizer.

O MUNDO CONTRADITÓRIO

Desejamos coisas contraditórias. E assim, se temos vícios devemos combatê-los, em vez de cultivar utopias enganadoras e esperanças vãs. Considerando-nos ou os melhores ou os piores, não nos safamos. Relendo o “Portugal” de Miguel Torga, surpreendemo-nos quando nos fala do Algarve, onde o conheci e cuja memória guardo num lugar especial. Disse ele, depois de nos descrever quem somos e onde estamos, sem ilusões: «O Algarve, para mim, é sempre um dia de férias na pátria. Dentro dele nunca me considero obrigado a nenhum civismo, a nenhuma congeminação telúrica nem humana. Debruço-me a uma varanda de Alportel e apetece-me tudo menos ser responsável e ético. As coisas de Trás-os-Montes tocam-me muito no cerne para eu poder esquecer a solidariedade que devo a quem sofre e a quem sua. E isto repete-se com maior ou menor força no resto de Portugal. Mas, passado o Caldeirão, é como se me tirassem uma carga dos ombros. Sinto-me livre, aliviado e contente, eu que sou a tristeza em pessoa! A brancura dos corpos e das almas, a limpeza das casas e das ruas, e a harmonia dos seres e da paisagem lavam-me da fuligem que se me agarrou aos ossos e clarificam as courelas encardidas que trago no coração. No fundo, e à semelhança dos nossos primeiros reis, que se intitulavam senhores de Portugal e dos Algarves, separando sabiamente nos seus títulos o que era centrípeto do que era centrífugo no todo da Nação, não me vejo verdadeiramente dentro da pátria. Também me não vejo fora dela. Julgo-me numa espécie de limbo da imaginação, onde tudo é fácil, belo e primaveril». Não, não há contradição nesta bela página, que temos de ler em estreita ligação a tudo o resto. O que Torga nos diz, é exatamente que temos de ser quem somos. E no caso algarvio, compreender que não é de sol e praia que se trata, mas de entender a cultura como capacidade de construir e usufruir, de amar a liberdade e de ligá-la à entreajuda, à compreensão da diversidade das raízes e ao desenvolvimento humano. E José Mattoso definiu o ponto que permite entender a paradoxal visão de Torga: «o fundamento da esperança no futuro é o reconhecimento dos ‘justos’ que nos rodeiam, seja qual for o meio em que vivem, e o apoio que somos capazes de lhes dar na sua luta pela ‘justiça’».

Guilherme d’Oliveira Martins

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