A Vida dos Livros

“Penser la Justice – Entretiens” de Michael Walzer e Astrid von Besenkist

A publicação da obra “Penser la Justice – Entretiens” de Michael Walzer e Astrid von Besenkist (Albin Michel, 2020) permite-nos pensar nas consequências sociais da pandemia que nos atinge.

E AGORA?

A pandemia, as suas consequências e a recuperação obrigam a uma reflexão séria sobre a democracia e um novo contrato social. E se na crise sanitária foram os Estados e os governos a marcar a diferença na proteção dos cidadãos, torna-se indispensável maior responsabilidade social para garantir mais coesão e menos desigualdades. A crise financeira de 2008 somou-se à crise da saúde pública – e o resultado esteve na fragmentação da sociedade, na emergência dos egoísmos nacionais e na fragilização das democracias, por falta de instituições mediadoras e pela emergência das lógicas de curto prazo… A publicação da obra Penser la Justice – Entretiens de Michael Walzer e Astrid von Besenkist (Albin Michel, 2020) constitui um importante contributo para a reflexão necessária sobre estes temas. Walzer ensinou Filosofia Política em Harvard e Princeton e é um dos mais importantes pensadores contemporâneos e a sua interlocutora é professora em Sciences-Po (Paris) e chefe de redação da revista “Raisons Politiques”. Como sabemos, o autor de As Esferas da Justiça (Presença, 2003) há muito que insiste na ideia de que mais importante do que escrever uma “Teoria da Justiça” é pensar a justiça distributiva em função do contexto económico, social e político. E é essa questão que ocupa, em parte significativa, este diálogo, fundamental para o momento que atravessamos.

Ao contrário das teorias contratualistas clássicas, Michael Walzer não tem uma abordagem da justiça como realidade hipotética. Antes, prefere pensar nas condições de um consenso verdadeiro e concreto – e nisso demarca-se do “consenso de sobreposição” de Rawls. Por outro lado, não podemos contentar-nos com meras doutrinas morais. Daí a importância do pluralismo, não confundível com relativismo. Tudo depende do significado que os cidadãos atribuem aos bens que recebem. A justiça distributiva varia com a natureza dos bens distribuídos, com as esferas nas quais se verifica essa partilha e com o tempo e o contexto cultural com que nos deparamos. Os bens possuem uma significação diferente consoante a respetiva inserção económica e social. E é esta insistência na “diferença” que constitui a marca própria do pensamento de Walzer. De facto, não podemos apreciar o que é devido a uns e a outros enquanto não soubermos como as pessoas se ligam entre si através do que produzem e distribuem. A singularidade dos sujeitos económicos e o funcionamento das sociedades não se referem apenas às coisas que se fabricam, mas aos diferentes significados que lhes atribuímos, numa objetivação progressiva e plural (na segurança, no bem-estar, no dinheiro, na organização, na educação, nos tempos livres, no poder político, no reconhecimento etc.). E é neste entendimento que o pensador prefere os passos lentos do reformismo (mercê do diálogo e do gradualismo), em lugar dos movimentos rápidos e revolucionários – que rapidamente se tornam reversíveis, já que não podemos fazer tábua rasa dos valores vividos socialmente.

UM NOVO CONTRATO SOCIAL

Um novo contrato social obriga, assim, a uma economia centrada na ideia de serviço público de qualidade, num contexto democrático, caracterizado pelo desenvolvimento humano baseado em crescimento limpo, mobilidade segura, envelhecimento ativo com saúde e no melhor aproveitamento da inteligência artificial como instrumento ao serviço da dignidade humana. Urge, deste modo, distinguir valor e preço – porque o que tem mais valor não tem preço, pressupondo o desenvolvimento a noção qualitativa de criação de valor, porque a sociedade não pode basear-se num crescimento ilimitado. O cidadão contribuinte não pode apenas ser consumidor, tem de participar, de estar informado e de contribuir para que Estado e sociedade se tornem fatores de inovação. Daí a necessidade de haver mediadores credíveis, legítimos e respeitados. Se o Estado não deve ser produtor, a sociedade não pode ser apenas consumidora. A legitimidade democrática obriga a considerar a participação, a representação, a transparência e a partilha solidária dos cidadãos. Tem de haver complementaridade entre o contributo das pessoas e a qualidade do serviço público que auferem. Os sistemas fiscais e a justiça distributiva pressupõem: a tributação adequada aos rendimentos, aos compromissos e às prioridades correspondentes ao bem comum; a criação de um valor solidário, correspondente a serviços públicos de qualidade, devidamente avaliados, próximos das pessoas, em especial na saúde, educação e cobertura de riscos sociais; bem como o respeito da regra de ouro das finanças públicas e da equidade intergeracional – a dívida pública só é legítima se realizar investimentos reprodutivos, a sustentabilidade social e ecológica deve salvaguardar o futuro do planeta e das novas gerações. Como tem afirmado Mariana Mazzucato, precisamos de instituições que moldem os mercados e os tornem fatores inovadores de uma economia humana, não acomodada nem dominada pela cegueira burocrática (Cf. O Valor de Tudo. Fazer e Tirar na Economia Global, Temas e Debates, 2018)

MAIS CIDADANIA

Eis porque um novo contrato social, que valorize a participação dos cidadãos e a responsabilidade solidária, tem de se basear na diferenciação positivae nacomplexidade, adotando políticas ativas centradas na valorização do “capital humano”. A aprendizagem é a chave do desenvolvimento, pois só ela permite compreender criticamente os limites, e assegurar que a informação se torne conhecimento, e que o conhecimento se torne sabedoria. A pandemia, permitiu-nos verificar que desvalorizámos elementos essenciais. Importa tirar consequências – precisamos de um planeamento participado e responsável, que nos permita viver de acordo com os meios de que podemos dispor. O desperdício afeta a sustentabilidade e a justiça. Liberdade e ignorância são contraditórios – informação e conhecimento exigem aprendizagem e justiça. A pandemia ampliou a automação que ameaça trabalhadores de serviços pessoais pouco qualificados, pelo que se exige melhor educação e qualificação, preparando as pessoas para as mudanças do mercado. Eis por que importa pensar num contrato social, assente na ligação entre liberdade e responsabilidade, autonomia e solidariedade, Estado e sociedade civil, criando verdadeiras parcerias capazes de defender o bem comum e o interesse público e não apenas o maior ganho. Importa, no fundo, que haja catalisadores, públicos, sociais e privados (como na “Nova Fronteira” de J. F. Kennedy), centrados na inovação social, na aprendizagem e no equilíbrio ambiental – designadamente nos três domínios fundamentais da quarta revolução industrial: a energia, a saúde, a digitalização. Eis porque precisamos de agir em vários tabuleiros, considerando a diferença e a complexidade, o que obriga à definição de missões, de objetivos e calendários, à interdisciplinaridade, à coordenação supranacional e à articulação de setores, em suma, à consideração da experiência e à recusa de lógicas simplificadoras…

Guilherme d’Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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