A Vida dos Livros

Património de Origem Portuguesa no Mundo – Arquitetura e Urbanismo

Obra sob direção de José Mattoso (F. C. Gulbenkian, 2010-2011) abrange três volumes e Índices e deu origem ao Portal HPIP – Património de Influência Portuguesa, que é um projeto único, indispensável para os estudiosos do tema, como agora se recorda.

UMA DESCOBERTA FUNDAMENTAL
A recente descoberta de uma capela quinhentista na Cidade Velha, na ilha de Santiago, em Cabo Verde, constitui uma nova demonstração (se tal não fosse já claro) da importância da inclusão da Ribeira Grande na lista do Património mundial da UNESCO, que tive o gosto de apoiar desde o início. Trata-se de um exemplo, entre outros, de como o conhecimento do património artístico e arqueológico merece especial atenção e cuidado. Neste momento, a comunidade científica acompanha os trabalhos que estão a ser realizados no local, no âmbito do projeto “Concha” e que permitirão devolver ao público um marco de grande valia no património cultural da humanidade. De facto, no final do presente ano, poderemos visitar o templo devidamente restaurado e próximo da sua versão original, em condições de segurança e qualidade. E devemos insistir na compreensão do Património Cultural, não como realidade do passado ou como marca de uma qualquer identidade, ainda que multiforme, mas como um exemplo de um valor comum, partilhado por diversas culturas e comunidades. E não devo esquecer a reflexão dinâmica desenvolvida na UNESCO e no Conselho da Europa (designadamente na Convenção de Faro sobre o valor do património cultural na sociedade contemporânea – 2005) numa perspetiva aberta e crítica, e não fechada e retrospetiva, a propósito do património e da cultura. As lições do recentemente terminado Ano Europeu do Património Cultural – 2018 apontam nesse sentido, com especial ênfase para a mobilização dos cidadãos para a defesa do património como realidade comum, como realidade inclusiva e não exclusiva.

UM PROJETO NOTÁVEL
Serve esta referência para lembrar a importância do projeto “Património de Influência Portuguesa – HPIP”, lançado pela Fundação Gulbenkian em 2012, na sequência do inventário sistemático do património histórico de origem portuguesa, arquitetura e urbanismo, lançado por Emílio Rui Vilar, que deu origem a três volumes em papel e a um de índices, a que sucede o portal, sob a direção de José Mattoso (2007) – como uma base de informação disponível não só para a comunidade científica, mas também para os cidadãos do mundo. Trata-se de um instrumento de trabalho, para quem estuda ou deseja conhecer as repercussões na arte e na arquitetura da presença portuguesa no mundo. E assim constituiu-se “um objeto de estudo, um corpus, como conjunto significativo do contexto em que os seus diversos elementos foram criados, dos sinais que os caracterizam, na sua singularidade ou na sua categorização, das alterações que sofreram, enfim, dos aspetos que justificam o seu valor patrimonial”, urgindo não “confundir as épocas e as situações, e não projetar sobre o passado fenómenos da nossa época”. Falando da obra publicada em 2010 e 2011, temos na Ásia e Oceania o património do Estado da Índia e o que dependeu do Padroado Português do Oriente, ainda que fora do subcontinente indiano, a que se soma Macau e Timor – estão em causa essencialmente os séculos XVI e XVII, sem esquecer o prolongamento do Padroado e o prolongamento das reminiscências da influência portuguesa. Na América do Sul, temos o Brasil e a Colónia do Sacramento (Uruguai) com uma presença fundadora nas construções dos séculos XVII e XVIII, baseadas nos modelos metropolitanos e ligadas sucessivamente aos ciclos do açúcar, do ouro e dos diamantes, com sistemas administrativos análogos aos da metrópole, ainda marcados pela exploração de mão-de-obra escrava, pelas guerras com holandeses e franceses, pela presença da Corte no Rio de Janeiro, pelo Reino Unido e pela independência. Já em África, Mar Vermelho e Golfo Pérsico encontramos vestígios de entrepostos e fortalezas no litoral, criados para servirem a carreira da Índia e a captação da mão-de-obra escrava. A presença no interior é tardia, ocorrendo a partir do século XIX, com a ocupação militar dos vales dos rios e com a criação de estruturas para exploração de matérias-primas, à semelhança do que acontecia na colonização europeia.

UMA PERSISTENTE AÇÃO
Esta publicação vem na sequência de uma ação anterior apoiada pela Fundação Gulbenkian, de recuperação em edifícios e monumentos, entre as quais se contaram o Forte do Príncipe da Beira, em Rondónia (Brasil), a Casa de Nacarelo, na Colónia do Sacramento, a Fortaleza de Arzila (Marrocos), a catedral portuguesa de Safim (Marrocos), o Forte de São João Batista de Ajudá (Benim), o Forte de Jesus, em Mombaça (Quénia), o Forte de Quíloa (Tanzânia), as fortalezas de Ormuz e Qeshm (Irão), a Igreja do Rosário, em Daca (Bangladesh), a Feitoria Portuguesa de Ayutthaya (Tailândia) ou a Igreja de São Paulo, em Malaca (Malásia), para além de intervenções para preservar bens culturais valiosos em museus como os de Velha Goa e de Cochim, ou da inventariação e classificação de arquivos. Entendeu, porém, a Fundação dar prioridade à criação de um instrumento de informação traduzido na feitura de um portal público interativo assente numa base de dados georreferenciada. O portal teve como acervo inicial o conteúdo dos livros, mas logrou suscitar o contributo de quantos propuserem acrescentar ou corrigir conteúdos. Daí a importância do protocolo de colaboração entre a FCG e as Universidades de Coimbra, de Lisboa, de Évora e Nova de Lisboa – com o objetivo de estabelecer as condições de cooperação com vista à produção e transferência de propriedade e gestão do portal interativo. As Universidades de Coimbra e de Évora asseguraram até ao presente a coordenação do projeto, e o Conselho Executivo de gestão do HPIP decidiu assegurar a presença de um representante da FCG no Conselho Executivo, mantendo a propriedade e gestão do portal a cargo das Universidades. O projeto HPIP não tem equivalente, dada a sua natureza específica. Não se trata, porém, de fazer mais do que dar uma informação rigorosa e objetiva, não ditada por qualquer razão identitária ou unilateral. É a noção de salvaguarda de um património comum que está em causa. Daí a necessidade de uma informação objetiva, que, ela mesma, permita aos investigadores desenvolverem os seus estudos e tirarem as suas conclusões. A qualidade da historiografia depende do rigor da informação disponível, do mesmo modo que o património, a herança e a memória se devem constituir e consolidar a partir de inventários exaustivos e fundamentados, de estudos críticos respeitantes a fontes criteriosamente escolhidas, credíveis e de confiança. E relembrando o papel desempenhado pelos principais instrumentos internacionais, no âmbito das Nações Unidas, da UNESCO ou do Conselho da Europa, devemos considerar que o património cultural deve tornar-se um fator de paz e de cooperação internacional. O património cultural não é de uma região, de um país ou de uma cultura – é uma manifestação de criatividade e de valor – que deve estar ao serviço da humanidade.


Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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