Quando Eduardo Lourenço atribuiu ao grupo de “O Tempo e o Modo” e a António Alçada Baptista uma função intelectual e ética compreendeu o cerne da questão, uma vez que, mais do que qualquer pressão direta sobre os acontecimentos, do que se tratou foi de criar condições para um gradualismo que foi correspondendo a uma maturação da sociedade portuguesa em vários campos. Se lermos com atenção a primeira série de “O Tempo e Modo”, percebemos que é a realidade que se move em diversos domínios. Na política, tratava-se de seguir uma certa dialética, que era o mesmo que usar um eufemismo para significar a semente da democracia. Na economia, a participação de Portugal no processo de integração europeia, através de EFTA, significava já a rutura com a ideia de “orgulhosamente sós”. Na sociedade, vemos que os valores tradicionais sofrem um abalo subreptício, mas real. Os dois números especiais da revista sobre “O Casamento” e “Deus O que é?” significam o tratamento de temas atualíssimos que representavam um avanço importante no campo da reflexão e das mentalidades. Para iludir a censura, os números não se inseriam na ordem periódica, para não estarem sujeitos à prova de página. No domínio da criação cultural e artística, pode-se dizer que tudo de fundamental passou por “O Tempo e o Modo” – literatura, teatro, música, artes, educação, formação, ciência, tecnologia – tudo… Edgar Morin disse que em pouco tempo uma geração avançava cinquenta anos. Simultaneamente, a Associação Internacional para a Liberdade da Cultura, com Pierre Emmanuel, e as iniciativas do Centro Nacional de Cultura, além da Fundação Gulbenkian, apesar de todas as proibições foram preparando o terreno. Leia-se o volume “Liberdade da Cultura – Preparar o 25 de Abril”, que demonstra a importância que teve em Portugal a atuação da Comissão Portuguesa para as Relações Culturais Europeias, braço do Congresso para a Liberdade da Cultura, que permitiu o maior contacto com as democracias europeias, o que reforçou o desejo de liberdade e as convicções democráticas. Pierre Emmanuel e Roselyne Chenu são referências inesquecíveis que nos lembram uma fase decisiva para a concretização da democracia. E se o facto de António Alçada ter sido protagonista nas “Conversas com Marcello Caetano” causou perplexidades, a verdade é que não podemos esquecer em que medida essa atitude contribuiu decisivamente para preparar condições de tolerância que permitiram a consolidação democrática, de que Mário Soares foi protagonista.
Um dia, António recordou que era importante para o equilíbrio de uma embarcação que nem todos se concentrassem a bombordo ou a estibordo. Para ele, se todos iam para um lado, era necessário equilibrar o outro para que o navio se não virasse. Do mesmo modo, recordava o caso do seu amigo José Gomes Ferreira, com posição política bem conhecida, que enquanto alguns lhe viravam a cara, ele fazia questão de atravessar a rua para lhe dar um abraço, pois a hombridade não escolhe ocasiões. Edgar Morin seguiu com atenção a revolução portuguesa, fiel aos seus amigos, e com especial atenção aos falsos entusiasmos e aos radicalismos de última hora. O fundamental era a defesa das liberdades fundamentais. Edgar tornou-se amigo próximo de Mário Soares, que António Alçada Baptista lhe apresentou em Paris. Quando soube da morte de Mário Soares, isso abalou-o profundamente. Depois da morte de Helena Vaz da Silva e de António Alçada foi o momento mais triste da solidariedade portuguesa.
Para Morin, a institucionalização da democracia portuguesa foi exemplar na história contemporânea. A democracia e a liberdade puderam vencer. De facto, como resulta da sua reflexão teórica a democracia não é um processo de escolha dos governos ou de apuramento de responsabilidades, é mais do que isso, uma vez que se trata de um sistema de valores éticos que permite definir o Estado de Direito como primado da lei, legitimidade do voto, legitimidade do exercício e concretização da justiça. Como se compreende, Edgar Morin sempre entendeu, por isso, que os amigos portugueses não se preocupavam com projetos e jogos de poder, mas com a reforma das mentalidades e com os fundamentos éticos da realização da dignidade humana. É nesse ponto que é importante perceber que os polos profético e político se completam. Apesar das diferenças, António e Mário Soares fazem parte da mesma raiz que Morin reverenciou – centrado na liberdade. Por isso, o projeto da nova revista portuguesa em que Edgar participou tinha as duas referência que o filósofo tanto amava – “Raiz e Utopia”. Na raiz estavam os fundamentos, na utopia o horizonte de exigência e de mudança, não da sociedade perfeita, mas da capacidade de ser melhores. Daí que Morin preferisse falar de metamorfose, fiel à natureza e à complexidade, em vez de transformação.
Para o pensador, o fundamental na revolução portuguesa estava na coerência e na coragem do Movimento da Forças Armadas que, como prometeu em 25 de Abril, devolveu à soberania popular das instituições civis a legitimidade do Estado e da Sociedade. É certo que não há perfeição, mas vontade de ser melhor, com compromissos, coerência, respeito mútuo e cidadania responsável. A ligação especial aos amigos da resistência e a pessoas como Mário Soares e Maria Barroso ou a militares democratas como Ernesto Melo Antunes ou Ramalho Eanes tornou a presença de Edgar Morin em Portugal uma referência natural que determinou uma vontade expressa de deixar registada a memória desta ligação de uma amizade solidária.
A História não se faz apenas de grandes acontecimentos. Constrói-se com grandes decisões e com pequenos passos. Pode dizer-se que alguém poderia ter grandes ambições para uma carreira ou para uma vida, no entanto no balanço geral de uma existência temos de considerar tudo. Edgar Morin conheceu por isso os gestos, de facto significativos, de um grupo de católicos inconformistas e deu-lhes uma importância especial, numa sociedade em metamorfose, desejosa de abertura e de liberdade. Por isso recordava o testemunho daquele miliciano com experiência em África que confessava a António Alçada como fora importante a leitura de “O Tempo e o Modo” durante as missões do serviço militar obrigatório, para compreender a importância das ideias e dos acontecimentos. Para além das aparências, Emmanuel Mounier ensinava, no fundo, que o acontecimento é o nosso verdadeiro mestre interior.


