A Vida dos Livros

Padre António Vieira – a arquitetónica do Quinto Império e a carta Esperanças de Portugal (1659)

“Padre António Vieira – a arquitetónica do Quinto Império e a carta Esperanças de Portugal (1659)” da autoria de Miguel Real é um pequeno ensaio pleno de interesse, que revela uma faceta menos conhecida do grande orador sagrado.

UMA PRESENÇA INESPERADA

Regressei há dias aos Países Baixos, numa visita familiar, adiada há mais de dois anos pela pandemia. Apesar das previsões meteorológicas anunciarem mau tempo e a proximidade de uma frente polar, houve boas condições, que permitiram um belo regresso. E aproveitei para seguir as pisadas do Padre António Vieira nas célebres viagens diplomáticas, em representação do rei D. João IV. E deparei-me com a presença inesperada de Menasseh ben Israel (1604-1657) nesta peregrinação, ao encontro dos judeus portugueses.  Em 20 de abril de 1646, Vieira chegou a Haia, vindo de Rouen, com duas missões: discutir o futuro de Pernambuco, na posse dos holandeses, e contactar os sefarditas portugueses sobre a possibilidade de regressarem a Portugal num momento decisivo em que os meios financeiros faltavam, com o Tesouro exaurido por sessenta anos de monarquia dual com a Espanha. O jesuíta conhecia bem o estado de espírito dos judeus portugueses – tinham uma boa lembrança da pátria antiga, mas desejavam, no essencial, liberdade de consciência e garantias de segurança, que a Inquisição não dava. Sem provas documentais, sabemos que o Padre Vieira se encontrou com Menasseh ben Israel, cuja pessoa admirava, partilhando muitas das suas convicções. Tal como pensavam os conselheiros económicos do rei, defensores do que designamos como política de fixação, que obrigava a investimentos mercantilistas, era indispensável atrair capitais e mobilizar iniciativas para reconstruir uma economia empobrecida. O facto de os capitais ligados ao comércio das Índias Orientais e Ocidentais estarem nas mãos de judeus e cristãos-novos constituía um motivo para que a diligência defendida pelo diplomata jesuíta representasse uma oportunidade que teria de ser aproveitada. Daí a importância do diálogo com a comunidade judaica com a preciosa ajuda de um líder religioso e civil de indiscutível prestígio.

MENASSEH BEN ISRAEL

Explique-se que Menasseh ben Israel nasceu na Madeira, filho de Gaspar Rodrigues Nunes, sendo-lhe dado o nome de Manuel Dias Soeiro. O pai, acusado de práticas judaizantes, teve de partir para a Holanda em 1613 e tomou o nome de Joseph ben Israel, dando a seus filhos os nomes de Ephraim e de Menasseh. Em 1622, encontramos Menasseh como pregador da comunidade, no ano seguinte casado com Raquel Abarbanel, de uma família importante. Em 1626, funda a primeira tipografia de caracteres hebraicos, onde publica obras em hebraico, latim, espanhol e português. Corresponde-se com Rembrandt van Rijn (que o retrata) e com Hugo Grócio, sendo figura muito respeitada. Semuel ben Israel Soeiro, o filho, prosseguirá a intensa atividade editorial paterna. Em 1651, Menasseh tentará estabelecer pontes com as ilhas britânicas, mantendo contactos com Cromwell, num primeiro momento com resistências, apesar de uma predisposição positiva por parte da fugaz República britânica. Em 1656 é inaugurada a Sinagoga de King Street e é decidida a construção do hospital de Mile Ende, iniciando-se um grande crescimento da comunidade judaica, sobretudo a partir do reinado de Carlos II, marido de D. Catarina de Bragança. Menasseh está em Londres entre 1655 e 1657, regressando aos Países Baixos em 1657. Morre em Midleburgo em novembro e está sepultado no cemitério judeu de Beit Haym, que conheço bem, e que fica em Ouderkerk no Amstel, nos arredores de Amesterdão. Diga-se que o rabino Menasseh ben Israel não estava em Amesterdão quando Saul Levi Morteira assinou a condenação de Bento Espinosa, e diz a tradição que se Israel tivesse intervindo tal decisão não teria sido tomada.

UM DIPLOMATA ESPECIAL

O Padre António Vieira ficaria nos Países Baixos durante três meses, voltando a Haia a 17 de dezembro de 1647. A missão de Vieira era complexa, desde o casamento de D. Teodósio, filho de D. João IV, alvo de uma grande pressão diplomática da parte de Mazarino, no sentido de reforço da influência francesa, até ao destino de Pernambuco, mas sobretudo na tentativa de mobilizar recursos para a reconstrução do País – abrindo as portas do comércio marítimo com os territórios africanos e americano aos judeus portugueses da Holanda. Se é certo que os resultados práticos não foram efetivos, é fundamental o que António José Saraiva descobriu, na sua estada holandesa. Não foi apenas o dinheiro dos judeus que interessou António Vieira, mas a aproximação das teses judaicas. Assim considerou os judeus, a “gente da nação”, um povo laborioso, enriquecedor das comunidades em que se inseriu, em nada podendo perverter os costumes tradicionais da Igreja Católica. E como está bastamente demonstrado na reflexão e na oratória, se o capital mercantil dos judeus lhe importou, com resultados práticos, houve igualmente uma preocupação de justificar a aproximação às ideias positivas que poderiam colher-se no pensamento judaico. Daí o sucesso na negociação dos empréstimos para a coroa portuguesa com Duarte Silva, cristão-novo de Lisboa, que abriu caminho aos créditos obtidos em Haia e Amesterdão. E a proposta de solução económica para o reino, enviada a D. João IV em 1643, consagra a necessidade de convergência entre judeus e cristãos, “que esperarão juntos e harmonizados o fim dos tempos sob um mesmo Império temporal e um só Império espiritual de Cristo”. Estamos perante a revelação lenta e gradual do pensamento profético do Padre António Vieira no sentido que virá ser defendido na “Chave dos Profetas”. E é com Menasseh ben Israel, em Amesterdão, que o jesuíta encontrará os fundamentos da complexa ideia de “Quinto Império do Mundo”, baseada no livro de Daniel. Como diz Miguel Real, “o sentido que o Padre Vieira encontrara em Amesterdão fora o sentido total da história e do mundo concentrado num único ano, 1666, e numa única teoria englobalizadora, o Quinto Império do Mundo ou o Reino de Cristo Consumado” (in “Padre António Vieira – a arquitetónica do Quinto Império e a carta Esperanças de Portugal – 1659” – “Revista Lusófona de Ciência das Religiões”, 2008). E, de modo pioneiro, António José Saraiva, em 1972, nos “Studia Rosenthaliana” destacou as semelhanças entre o espírito profético de M. ben Israel e do Padre Vieira, que Hernâni Cidade enfatiza em “Vieira à Luz de um Recente Estudo de António José Saraiva”, in “Colóquio-Letras”, F.C. Gulbenkian, março de 1973. Saraiva salienta o facto de em 1644, nos planaltos da Colômbia, ter sido descoberta uma das tribos desaparecidas de Israel, de Ruben, segundo o pensamento profético judaico, referido por Bandarra; bem como o facto de Vieira ter concluído que a doutrina cristã, de índole eminentemente espiritual, não excluir a doutrina judaica sobre um Messias de ordem eminentemente temporal. De facto, é no regresso de Amesterdão que Vieira inicia a escrita, nunca acabada, da “História do Futuro” (1649), e em 1659 a carta “Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo”, pela qual será processado pela Inquisição (a partir de 1663), explicitará a síntese obtida, segundo a qual o “Quinto Império localizar-se-ia na Terra, na totalidade geográfica da Terra, e não no Céu”, mercê da convergência de vontades de um Imperador espiritual e de um Imperador temporal, no sentido da criação de um estado de justiça e santidade, de paz universal e de sobriedade. Amesterdão lembra tudo isso…

Guilherme d’Oliveira Martins

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