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“OUTROS MAGOS…”

por Guilherme d’Oliveira Martins, é o conto de Natal que o CNC partilha com todos com os votos de um FELIZ NATAL e ÓPTIMO 2009

OUTROS MAGOS…
por Guilherme d’Oliveira Martins


Melchior acabara uma sessão sobre os efeitos do “choque das civilizações” na evolução do mundo e foi para o seu gabinete. O grupo de alunos do mestrado deste ano era particularmente estimulante, e naquela tarde o debate prolongara-se mais do que o habitual, com pistas de reflexão interessantes, em especial sobre um tema pouco abordado, o da alteração das fronteiras entre civilizações. Melchior era um velho e prestigiado professor de Princeton, com extensa obra publicada sobre o diálogo das civilizações. Estava, no entanto, numa encruzilhada na sua reflexão, uma vez que pensava que a ordem internacional estava seriamente ameaçada e incapaz de se regenerar com os métodos tradicionais… Conferencista brilhante, vinha clamando em seminários e colóquios para a necessidade de lançar as bases de um novo equilíbrio e de uma nova legitimidade internacional.


Naquele dia frio de Dezembro, sentou-se, cansado, em frente ao computador e reparou numa estranha mensagem no seu correio electrónico. O endereço de origem era o da Universidade de Nairobi no Quénia (lá estavam as duas letras finais ke) e vinha assinado por Balthasar Africanus. A missiva era curta em inglês e dizia: “Caro Senhor, Sou professor de Antropologia e tenho seguido as suas conferências e os seus escritos, gostaria de lhe dizer o quanto o admiro e que estou perante as mesmas perplexidades que o levam a dizer que precisamos de um denominador comum que fundamente a paz. Sei que estará a 6 de Janeiro na Universidade de Bethlehem, no território da Autoridade Palestiniana. Também aí estarei. Poderemos trocar impressões?”. Melchior nunca ouvira falar deste antropólogo queniano, mas depressa se documentou sobre ele. A wikipedia resolveu o problema. Aí encontrou uma sucinta biografia de Balthasar Africanus, antropólogo e poeta de quarenta anos, autor de diversas obras sobre o diálogo entre religiões, em especial entre o animismo, o islão e o cristianismo. Depois, descobriu a página pessoal do seu interlocutor na Universidade de Nairobi, onde também se noticiava que em 6 de Janeiro estaria na Palestina a falar do tema “Não basta falar de diálogo…”. E pôde tirar na impressora um texto recente com um título surpreendente “Que Natal do Espírito e da Paz?”, onde de um modo fundamentado, em 12 páginas, falava do que o teólogo alemão Hans Küng vem reclamando sobre o diálogo entre as religiões como base da paz entre os povos e nações. E nessas páginas havia três citações dos seus próprios ensaios sobre o tema, com uma referência muito elogiosa: “não é possível hoje tratar desta questão sem conhecer e estudar as brilhantes reflexões de A.B. Melchior, Ph. D., para quem o diálogo entre civilizações só pode existir através de um esforço efectivo de compreensão e respeito”. De facto, a mensagem era de alguém que vinha acompanhando silenciosa e atentamente a sua reflexão. Apressou-se, assim, a responder: “Prezado Colega, terei o maior gosto em trocar impressões consigo, aproveitando para lhe agradecer a sua mensagem e desejando-lhe um Bom Ano Novo”.


E foi para casa, levando consigo as doze páginas do Africanus, que voltou a ler depois de jantar, descobrindo nelas novas razões de interesse. O desconhecido conhecia bem o terreno em que se movia. Recusava simplificações e concluía que o vazio espiritual é tão perigoso como o fanatismo religioso, pois ambos geram a violência, a incompreensão, a indiferença… Dois dias depois, o Professor A.B. Melchior recebeu nova mensagem de Balthasar Africanus, confirmando tudo e dando as coordenadas do alojamento. Afinal, ambos ficariam numa das residências da Universidade e assim teriam oportunidade para conversar nos dois dias da conferência. Na resposta já houve entrada em matéria e começaram a discutir este ou aquele tema das suas reflexões eruditas.


Mas no final dessa semana Melchior recebeu um sobrescrito de cor parda escrito à mão, vindo da Índia, de Bangalore. Era de um jovem filósofo e investigador de Biotecnologia e de Bioética, que também iria a Bethlehem. Tinha vinte e cinco anos, chamava-se Rajiv Gaspar e era investigador na Índia, depois de ter estado em Oxford e Harvard. Numa letra irrepreensível explicava que iria à Palestina, e que conhecia razoavelmente a obra de A.B. Melchior. No entanto, gostaria de trocar impressões. O professor de Princeton não tinha informações sobre este segundo desconhecido, e as que conseguiu foram muito parcas. Apenas descobriu um currículo sucinto na Internet, que confirmava tudo o que vinha no cartão, mas percebeu que havia outra informação diversa em hindi, que não podia compreender. De qualquer modo, Rajiv Gaspar era um estudioso do hinduísmo e das relações do sincretismo religioso com as crenças do mundo. Logo que chegou ao Instituto de Estudos Avançados, Melchior enviou uma mensagem para o endereço da net enviado pelo jovem, confirmando todo o interesse em falarem. De imediato veio a resposta entusiástica de R. Gaspar e uma primeira versão do texto (em duas línguas, num irrepreensível inglês de Oxford, com tradução num incompreensível hindi) a apresentar em Bethlehem, com o título “Paz e barreiras de comunicação”…


No meio das várias mensagens trocadas nesse dia entre A.B. Melchior e Rajiv Gaspar, veio uma nova missiva de Bathasar Africanus, dando um novo título à sua comunicação. Já não seria o inócuo “Não basta falar de diálogo…”, mas sim um título surpreendente e enigmático: “Em Beit-Lahm entre Ouro, Incenso e Mirra”. A.B. Melchior sabia que Beit-Lahm significa em língua árabe “casa do cordeiro” e que essa é a designação actual de Bethlehem. A referência aos presentes dos Reis Magos aparecia ali, no entanto, misteriosamente. Conhecia a razão dos símbolos (mas ficou intrigado): o ouro significava a realeza e a relatividade das riquezas terrenas; o incenso, como resina aromática usada nas cerimónias religiosas, simbolizava a fé e a oração; e a mirra, outra resina usada no embalsamamento no Egipto antigo, representava a eternidade. A referência aos Magos era conhecida, vinha nos textos cristãos, em S. Mateus: “Entrando na casa, viram o menino, com Maria sua mãe. Prostrando-se, o adoraram; e abrindo os seus tesouros, entregaram-lhe suas ofertas: ouro, incenso e mirra.”.


Meteram-se as festas, A.B. Melchior passou esse tempo com a família. Balthasar Africanus e Rajiv Gaspar nada disseram. E, finalmente, a 6 de Janeiro, os três encontraram-se na Palestina, na Universidade, para debaterem o diálogo entre as religiões. Importa pouco o que se passou realmente nesse momento em que uma sala repleta aplaudiu os trê oradores, o velho Professor Melchior com as suas longas barbas proféticas, Balthasar, o queniano com ar jovial e verbo brilhante, sempre provocador, e o jovem Gaspar, com ar afável e simpático e ideias muito firmes. Melchior falou de “Bloqueios e Labirintos”, mas disse que via com muito agrado que os seus companheiros de mesa estivessem empenhados nas comunicações e compreensões que se fizessem pela partilha de experiências. E Balthasar revelou, finalmente, em que pensara no Natal do Espírito e da Paz, e por que razão invocava o ouro, o incenso e a mirra. Disse ele que esses três símbolos podem ser invocados no tempo actual. Se é preciso pôr as riquezas ao serviço das pessoas, o ouro não pode ser instrumento de escravidão. As religiões e a liberdade religiosa devem ser factores de entendimento e de paz e nunca de intolerância e de violência. A vida e a morte têm de ser encaradas como apelos permanentes ao amor, à liberdade e à compreensão das diferenças. Desde o Sermão de Benares e do Sermão da Montanha, citou mestres espirituais do Ocidente e do Oriente, do Norte e do Sul, hindus, budistas, judeus, cristãos, muçulmanos, taoistas, animistas, baha’is – simbolizados nessa adoração inesperada dos Magos em Bethlehem. E, nessa noite, Balthasar convidou Melchior e Gaspar para se juntarem. Afinal, fora ele que descobrira essa extraordinária coincidência: os seus nomes eram exactamente os dos Santos Magos das Escrituras.


Falaram longamente, e concordaram em que a dignidade da pessoa humana e o encontro das diferenças obrigam a uma nova atitude que nos coloque no lugar dos outros. É que o Outro que os Magos visitaram há dois milénios, que une e que atrai e que dá a liberdade de crer e de não crer, ensinou-nos que a paz obriga a fazer tudo para pôr no centro as pessoas humanas de carne osso. A.B. Melchior manteve as suas dúvidas e hesitações. Balthasar Africanus reforçou o seu idealismo, mas chorou pela fome dos seus irmãos. E Rajiv Gaspar percebeu ainda melhor que a ciência e a técnica têm de se desenvolver ligadas ao espírito e à liberdade. Foi como se estivessem a reviver, naquele lugar de angústia e incerteza, o que foi dito há dois milénios: “E vendo a estrela, alegraram-se eles com grande e intenso júbilo”.


OUTROS MAGOS…
por Guilherme d’Oliveira Martins


Melchior acabara uma sessão sobre os efeitos do “choque das civilizações” na evolução do mundo e foi para o seu gabinete. O grupo de alunos do mestrado deste ano era particularmente estimulante, e naquela tarde o debate prolongara-se mais do que o habitual, com pistas de reflexão interessantes, em especial sobre um tema pouco abordado, o da alteração das fronteiras entre civilizações. Melchior era um velho e prestigiado professor de Princeton, com extensa obra publicada sobre o diálogo das civilizações. Estava, no entanto, numa encruzilhada na sua reflexão, uma vez que pensava que a ordem internacional estava seriamente ameaçada e incapaz de se regenerar com os métodos tradicionais… Conferencista brilhante, vinha clamando em seminários e colóquios para a necessidade de lançar as bases de um novo equilíbrio e de uma nova legitimidade internacional.


Naquele dia frio de Dezembro, sentou-se, cansado, em frente ao computador e reparou numa estranha mensagem no seu correio electrónico. O endereço de origem era o da Universidade de Nairobi no Quénia (lá estavam as duas letras finais ke) e vinha assinado por Balthasar Africanus. A missiva era curta em inglês e dizia: “Caro Senhor, Sou professor de Antropologia e tenho seguido as suas conferências e os seus escritos, gostaria de lhe dizer o quanto o admiro e que estou perante as mesmas perplexidades que o levam a dizer que precisamos de um denominador comum que fundamente a paz. Sei que estará a 6 de Janeiro na Universidade de Bethlehem, no território da Autoridade Palestiniana. Também aí estarei. Poderemos trocar impressões?”. Melchior nunca ouvira falar deste antropólogo queniano, mas depressa se documentou sobre ele. A wikipedia resolveu o problema. Aí encontrou uma sucinta biografia de Balthasar Africanus, antropólogo e poeta de quarenta anos, autor de diversas obras sobre o diálogo entre religiões, em especial entre o animismo, o islão e o cristianismo. Depois, descobriu a página pessoal do seu interlocutor na Universidade de Nairobi, onde também se noticiava que em 6 de Janeiro estaria na Palestina a falar do tema “Não basta falar de diálogo…”. E pôde tirar na impressora um texto recente com um título surpreendente “Que Natal do Espírito e da Paz?”, onde de um modo fundamentado, em 12 páginas, falava do que o teólogo alemão Hans Küng vem reclamando sobre o diálogo entre as religiões como base da paz entre os povos e nações. E nessas páginas havia três citações dos seus próprios ensaios sobre o tema, com uma referência muito elogiosa: “não é possível hoje tratar desta questão sem conhecer e estudar as brilhantes reflexões de A.B. Melchior, Ph. D., para quem o diálogo entre civilizações só pode existir através de um esforço efectivo de compreensão e respeito”. De facto, a mensagem era de alguém que vinha acompanhando silenciosa e atentamente a sua reflexão. Apressou-se, assim, a responder: “Prezado Colega, terei o maior gosto em trocar impressões consigo, aproveitando para lhe agradecer a sua mensagem e desejando-lhe um Bom Ano Novo”.


E foi para casa, levando consigo as doze páginas do Africanus, que voltou a ler depois de jantar, descobrindo nelas novas razões de interesse. O desconhecido conhecia bem o terreno em que se movia. Recusava simplificações e concluía que o vazio espiritual é tão perigoso como o fanatismo religioso, pois ambos geram a violência, a incompreensão, a indiferença… Dois dias depois, o Professor A.B. Melchior recebeu nova mensagem de Balthasar Africanus, confirmando tudo e dando as coordenadas do alojamento. Afinal, ambos ficariam numa das residências da Universidade e assim teriam oportunidade para conversar nos dois dias da conferência. Na resposta já houve entrada em matéria e começaram a discutir este ou aquele tema das suas reflexões eruditas.


Mas no final dessa semana Melchior recebeu um sobrescrito de cor parda escrito à mão, vindo da Índia, de Bangalore. Era de um jovem filósofo e investigador de Biotecnologia e de Bioética, que também iria a Bethlehem. Tinha vinte e cinco anos, chamava-se Rajiv Gaspar e era investigador na Índia, depois de ter estado em Oxford e Harvard. Numa letra irrepreensível explicava que iria à Palestina, e que conhecia razoavelmente a obra de A.B. Melchior. No entanto, gostaria de trocar impressões. O professor de Princeton não tinha informações sobre este segundo desconhecido, e as que conseguiu foram muito parcas. Apenas descobriu um currículo sucinto na Internet, que confirmava tudo o que vinha no cartão, mas percebeu que havia outra informação diversa em hindi, que não podia compreender. De qualquer modo, Rajiv Gaspar era um estudioso do hinduísmo e das relações do sincretismo religioso com as crenças do mundo. Logo que chegou ao Instituto de Estudos Avançados, Melchior enviou uma mensagem para o endereço da net enviado pelo jovem, confirmando todo o interesse em falarem. De imediato veio a resposta entusiástica de R. Gaspar e uma primeira versão do texto (em duas línguas, num irrepreensível inglês de Oxford, com tradução num incompreensível hindi) a apresentar em Bethlehem, com o título “Paz e barreiras de comunicação”…


No meio das várias mensagens trocadas nesse dia entre A.B. Melchior e Rajiv Gaspar, veio uma nova missiva de Bathasar Africanus, dando um novo título à sua comunicação. Já não seria o inócuo “Não basta falar de diálogo…”, mas sim um título surpreendente e enigmático: “Em Beit-Lahm entre Ouro, Incenso e Mirra”. A.B. Melchior sabia que Beit-Lahm significa em língua árabe “casa do cordeiro” e que essa é a designação actual de Bethlehem. A referência aos presentes dos Reis Magos aparecia ali, no entanto, misteriosamente. Conhecia a razão dos símbolos (mas ficou intrigado): o ouro significava a realeza e a relatividade das riquezas terrenas; o incenso, como resina aromática usada nas cerimónias religiosas, simbolizava a fé e a oração; e a mirra, outra resina usada no embalsamamento no Egipto antigo, representava a eternidade. A referência aos Magos era conhecida, vinha nos textos cristãos, em S. Mateus: “Entrando na casa, viram o menino, com Maria sua mãe. Prostrando-se, o adoraram; e abrindo os seus tesouros, entregaram-lhe suas ofertas: ouro, incenso e mirra.”.


Meteram-se as festas, A.B. Melchior passou esse tempo com a família. Balthasar Africanus e Rajiv Gaspar nada disseram. E, finalmente, a 6 de Janeiro, os três encontraram-se na Palestina, na Universidade, para debaterem o diálogo entre as religiões. Importa pouco o que se passou realmente nesse momento em que uma sala repleta aplaudiu os trê oradores, o velho Professor Melchior com as suas longas barbas proféticas, Balthasar, o queniano com ar jovial e verbo brilhante, sempre provocador, e o jovem Gaspar, com ar afável e simpático e ideias muito firmes. Melchior falou de “Bloqueios e Labirintos”, mas disse que via com muito agrado que os seus companheiros de mesa estivessem empenhados nas comunicações e compreensões que se fizessem pela partilha de experiências. E Balthasar revelou, finalmente, em que pensara no Natal do Espírito e da Paz, e por que razão invocava o ouro, o incenso e a mirra. Disse ele que esses três símbolos podem ser invocados no tempo actual. Se é preciso pôr as riquezas ao serviço das pessoas, o ouro não pode ser instrumento de escravidão. As religiões e a liberdade religiosa devem ser factores de entendimento e de paz e nunca de intolerância e de violência. A vida e a morte têm de ser encaradas como apelos permanentes ao amor, à liberdade e à compreensão das diferenças. Desde o Sermão de Benares e do Sermão da Montanha, citou mestres espirituais do Ocidente e do Oriente, do Norte e do Sul, hindus, budistas, judeus, cristãos, muçulmanos, taoistas, animistas, baha’is – simbolizados nessa adoração inesperada dos Magos em Bethlehem. E, nessa noite, Balthasar convidou Melchior e Gaspar para se juntarem. Afinal, fora ele que descobrira essa extraordinária coincidência: os seus nomes eram exactamente os dos Santos Magos das Escrituras.


Falaram longamente, e concordaram em que a dignidade da pessoa humana e o encontro das diferenças obrigam a uma nova atitude que nos coloque no lugar dos outros. É que o Outro que os Magos visitaram há dois milénios, que une e que atrai e que dá a liberdade de crer e de não crer, ensinou-nos que a paz obriga a fazer tudo para pôr no centro as pessoas humanas de carne osso. A.B. Melchior manteve as suas dúvidas e hesitações. Balthasar Africanus reforçou o seu idealismo, mas chorou pela fome dos seus irmãos. E Rajiv Gaspar percebeu ainda melhor que a ciência e a técnica têm de se desenvolver ligadas ao espírito e à liberdade. Foi como se estivessem a reviver, naquele lugar de angústia e incerteza, o que foi dito há dois milénios: “E vendo a estrela, alegraram-se eles com grande e intenso júbilo”.

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