A Vida dos Livros

“Os Povos Peninsulares e a Civilização Moderna”

Recordamos o célebre texto publicado nos primórdios da Revista Ocidental (1875) por Oliveira Martins intitulado “Os Povos Peninsulares e a Civilização Moderna”.

A SINGULARIDADE DOS POVOS IBÉRICOS
“O heroísmo ativo gera o amor da liberdade; a liberdade anima os heróis; mas o herói não é o frio estoico, Bruto o desapiedado; não é uma abstração como na Itália, é um indivíduo sensível que chora, sente e geme, quando as dores do suplício o torturam; que exulta, folga e ri, quando chegam as horas do triunfo ou da festa; não é de pedra, é de carne; não veste a toga, calça os borzeguins do guerrilheiro, deita a clavina ao ombro, e desde Riego ou Saldanha, sabe ao mesmo tempo amar e morrer”…  A singularidade dos povos ibéricos corresponde, afinal, a esta capacidade de combater com determinação em prol da defesa da terra e dos povos. E assim o riso é livre e é caustico, não podendo esquecer-se três dimensões intimamente associadas – lírica, trágica e picaresca. Miguel de Unamuno foi dos que melhor entendeu esta característica portuguesa, que ia ao encontro das raízes comuns ibéricas. Cervantes elege Quixote como símbolo crítico, capaz de destruir muitas ilusões; Gil Vicente põe a nu todas as fraquezas, obrigando à autocrítica. Na Arte, Velasquez e Gil Vicente encontram-se, representando não um mundo ideal, mas as imperfeições naturais de uma natureza humana complexa e diversa. Como Ulisses, não temos réstia de invencibilidade, tendo de assumir todos os riscos, como no exemplo de D. João de Castro ao enviar os filhos para a “carniçaria” de Diu ou Gonçalo de Córdova, em Granada, essencial na consolidação do poder das instituições de Espanha. E assim o génio peninsular simbolizar-se-ia em Camões, numa obra sublime em que a dimensão épica inspirada em Virgílio articula, com respeito da palavra, a ação, o conhecimento e a sensibilidade, sem descurar especificidade de qualquer um desses termos.

HEROÍSMO E NECESSIDADE DE AÇÃO
É a necessidade da ação que marca a identidade peninsular e consequentemente a causa original das Descobertas, que “reside no desenvolvimento dado à física e à geografia de um lado, do outro nas tradições que as viagens dos cruzados tinham espalhado por toda a Europa. Assim, se explicaria o “papel colossal” de duplicar o mundo. “A política, o direito, a economia tem como base objetiva a História: é ela quem revela as leis da transformação das ideias e das instituições, as idiossincrasias nacionais, e quem solidifica pela análise, as conceções racionais humanas, que não provêm dela, antes se encontram imanentes no homem como substância própria. A razão conclui, a História analisa”. E é o tema político atual da relevância europeia que deve aqui ser equacionado, tornando-se crucial quando falamos da evolução de uma realidade global geoestratégica, na balança do mundo. Sem qualquer tentação anacrónica ou de julgamento moral de atitudes pretéritas, do que se trata é de conceber um projeto europeu plural, humanista, pacífico num sistema de polaridades difusas, considerando as bases necessárias de uma cultura de equilíbrio entre potências continentais, no sentido de contrariar novas hegemonias, com salvaguarda de sistemas de complementaridades e compensações – nos quais o primado da cultura, a investigação científica, a cooperação técnica e energética, a partilha e o domínio da informação possam funcionar como fatores positivos de desenvolvimento humano. Nada pode ser considerado como adquirido, e essa é uma qualidade que o historiador aponta, ou seja, a capacidade de compreender as fragilidades e as limitações. Não se trata de repetir a experiência histórica passada, nem de tentar explicações deterministas, mas de olhar o futuro, considerando as condicionantes críticas e as lições do que já teve consequências positivas. Por que razão a experiência europeia após a adesão peninsular teve resultados positivos? Uma vez que houve uma cuidadosa preparação e uma ponderação dos meios e dos fins. E, como disse Lorenzo Natali, o alargamento da Europa ao sul ibérico significou a abertura de horizontes para o mundo global – com tudo o que isso significaria de um mais intenso diálogo intercultural e da possibilidade (ainda não plenamente aproveitada) de ver a Europa como uma placa giratória e como um polo de equilíbrio, em lugar de um centro fechado sobre si e sobre os seus egoísmos.

A RECUSA DA FACILIDADE
A crise pandémica ensinou-nos que a autossuficiência, o imediatismo e a desatenção à sustentabilidade apenas abrem caminho à fragmentação, à desigualdade e ao desequilíbrio de influências. Atente-se nos resultados positivos da vacinação e do seu planeamento. Foi pela recusa da facilidade que pôde funcionar. Eis por que razão esta reflexão sobre os Povos Peninsulares merece atenção não à luz dos problemas do passado, mas entendendo o presente. A História não se repete, mas ensina-nos a considerar os tempos, as circunstâncias, os contextos, a sua diversidade e complexidade. Se a nossa base é a Península Ibérica, compreendamos as suas vantagens comparativas, que só obterão resultados positivos se não forem consideradas em abstrato, mas se forem previstas e avaliadas, sujeitas à correção da experiência. Qual o nosso valor próprio? Lembremo-nos de como o alargamento europeu à Península apresentou inequívocas vantagens – quer pelas capacidades próprias, quer pelas novas relações que se abriram.  Antero de Quental, ao ler o texto da Revista Ocidental, concordou, mas salientou a exigência de evitar qualquer tentação hegemónica, preferindo a compreensão social mútua, designadamente como referiu na conferência do Casino Lisbonense sobre “As Causas da Decadência dos Povos Peninsulares”. Afinal, as causas eram comuns e necessitariam de soluções articuladas. Hoje, o tema não perdeu atualidade. E a ideia emancipadora da Europa necessitará de capacidade de sermos audaciosos no que deve ser comum e determinados em cada Estado no que deve ser próprio, reforçando a defesa dos interesses vitais comuns. “A indústria não é somente a indústria, é também a determinação social do trabalho; a ciência não é somente o empirismo, é a vivificação que lhe dá corpo, é a metafísica; a política não é somente uma doutrina, é também um amor, uma paixão ardente pela harmonia coletiva; o direito não é somente uma fria codificação de leis, é um corpo animado pela alma da justiça; a vida não é somente um egoísmo, é também uma dedicação, um amor ardente, inextinguível!”  Que pretende dizer o autor? Que as condições materiais carecem de uma dimensão humana. Daí a importância da educação e da cultura, e a compreensão de que a aprendizagem é o fator essencial do desenvolvimento humano. Informação, conhecimento, compreensão e sabedoria, nada poderemos esquecer ou menosprezar. “A alma de Cid e de Viriato é e será sempre a nossa alma, de um Cid e de um Viriato como o fazem os elementos constitucionais da vida moderna”.  

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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