Em Busca de Ideias Contemporâneas

O temas das Identidades

Folhetim de Verão “Em Busca de Ideias Contemporâneas” – capítulo 30

Depois de um percurso feito com a condução dos maiores pensadores contemporâneos, regressamos ao início. Para Edgar Morin, o pensamento contemporâneo está confrontado com os desafios da complexidade e da diversidade. Por isso, as identidades devem ser vistas pelo prisma das diferenças. Eis por que razão a democracia e o Estado de direito devem centrar-se na dimensão universalista da dignidade humana, no respeito mútuo, na abertura, na separação de poderes, no pluralismo e na compreensão de todos.
Oiçamos, por isso, Edgar Morin.

“Ao falar do sujeito e do mundo gostaria de dissociar as duas palavras. Que é o sujeito? É um ser que se coloca no centro do seu mundo. Tudo o que se refere ao mundo é também referido a ele, em função do seu desejo, em função do seu egocentrismo e do seu querer viver. O ser vivo é de facto egocêntrico. Egocentrismo não significa, porém, necessariamente egoísmo. O sujeito é o centro do mundo. Felizmente, ele pode inscrever-se na categoria de “nós” e hesita entre o egoísmo e o altruísmo. A ideia de morte é também essencial para se compreender o que é o sujeito puramente humano. O ser humano tem horror à morte, que não é apenas uma decomposição física, mas uma destruição do seu ser e da possibilidade de dizer ”eu”. A destruição do “eu” é muito mais lamentável do que a dispersão das moléculas de um corpo. A morte introduz uma contradição na consciência do sujeito. Ele toma consciência de que é tudo para si mesmo e nada para o mundo. De facto, há uma relação permanente entre o tudo e o nada. Segundo um olhar objetivo, feitas as contas, o “eu” torna-se nada. O mundo aparece como comédia e como tragédia. O mundo é simultaneamente horrível e maravilhoso. E nós, segundo o nosso humor, e segundo momentos de alegria ou de menos coragem, vemos quer o lado maravilhoso quer o lado trágico e horrível da vida. É um toque de complexidade pensar que o maravilhoso do mundo não esconde o seu horror e que o lado negativo não faz desaparecer o maravilhoso. No que toca à identidade humana podemos assinalar que temos necessidade, pelo menos em parte, de referir o ancestral. Aliás, na sociedade tribal, alguém se define como filho, como no caso dos filhos de Israel, por exemplo. Dito de outra maneira, nós definimo-nos ao ascendente, pelo pai, pela mãe, e assim por diante, em relações a outros seres diferentes de mim. Nas sociedades arcaicas, o ascendente pode ser o ancestral. Pode até ser um animal ou um Totem. Doutro modo, a sociedade humana não pode pensar a sua unidade senão através da ideia de comunidade fraternal. Por isso, a nação moderna não pôde existir sem o tema mítico da pátria. A palavra nasce de modo paternal, masculino, para terminar de modo maternal, no feminino. Amamos a pátria, ela ama-nos, ela nos acolhe. Nós falamos mesmo de mãe-pátria. O lado paternal leva-nos à autoridade do Estado, a que devemos obedecer. A pátria, nos momentos de perigo, diz-nos como na “Marselhesa”: “Allons enfants de la patrie”. Tornamo-nos irmãos pelo tema da pátria. A identidade tem assim necessidade de algo muito concreto, muito carnal, ligado às figuras reais do pai, da mãe, dos irmãos e das irmãs, mas também das figuras mitológicas que colocam a ideia de consanguinidade, etc.

Então o que é a Europa? A Europa, no fundo, é uma pátria em formação. E a pátria, como ideia de nação foi posta em destaque por Otto Bauer, teórico marxista austríaco do fim do século passado, ao salientar a ideia de comunidade de destino. É preciso que nos sintamos, com razão ou sem ela, ligados a um destino comum para que efetivamente tenhamos um sentimento de pertença a uma entidade comum. Para uma pátria, o destino comum vem de muito longe, das origens. Para Portugal como para todas as nações, sabemos que o destino comum vem de uma história passada. Mas para a Europa o caso é inverso. Partimos de um destino comum, que queremos construir com um certo número de instituições e com o euro. Este destino comum, que não existia no passado, fazemo-lo retroagir à história. Aí se situa um processo interessante que se relaciona como conjunto passado – futuro – presente. E o passado pode ser revelado retrospetivamente pelo presente. Quando consideramos o passado, sem ter uma ideia de Europa, o que vemos? Vemos guerras, guerras incessantes. Se temos uma ideia-presente de Europa, vemos que essas guerras têm carácter típico, pelo menos até ao período napoleónico e até meados do século XIX. Há uma alteração das coligações, cada vez que uma potência tende a tornar-se poderosa ou hegemónica e visa controlar a Europa. Então a aliança muda. O rei de França Francisco I, vendo-se cercado pelo Império de Carlos V teve a ideia de se aliar aos turcos, ao inimigo. A Europa é um jogo de mudanças. E Napoleão construiu uma unidade europeia contra si próprio. Com a Primeira Guerra Mundial as regras alteraram-se num jogo de violência terrível. No fundo, a Europa fez-se de nações que queriam impedir a hegemonia de uma dentre elas sobre as outras e assim visavam salvar a diversidade europeia. Deste modo, na ideia de Europa temos historicamente esta consideração fundamental que é a sua diversidade.

Pensemos retroativamente, vimos que a Europa moderna, no Renascimento, constituiu-se por grandes correntes transeuropeias, que atravessavam as nações em guerra, e que, em geral iam de Este para Oeste. Houve, é certo, o cristianismo, religião que foi expulsa das suas terras originárias no Médio Oriente e na África do Norte. Houve depois o Renascimento, o regresso dos gregos, a laicização, a ciência, o desenvolvimento técnico, o progresso económico, as grandes correntes de ideias e as grandes correntes literárias. Direi mesmo que o Renascimento, no século XVII, do ponto de vista arquitetónico teve a sua grande obra-prima no Norte, nas neves, em S. Petersburgo, a mais bela cidade de inspiração italiana pelo espaço e pelo céu. As luzes partem de Paris e estendem-se a toda a Europa. O Romantismo parte de Iéna e estende-se a todo o velho continente. O naturalismo, o simbolismo, o surrealismo espalham-se pelo mundo enquanto a Europa se refaz. A Europa pode, assim, começar a tomar consciência a partir de uma projeção para o futuro e de uma clara vontade de presente, mesmo sem encontrar no passado o mito de uma unidade e de uma identidade europeia. A poli-identidade é um fenómeno cada vez mais normal: crianças de casais mistos têm um sentimento de dupla pertença, às vezes mais forte do que a da identidade autónoma. E depois há as identidades concêntricas: somos da mesma família, da mesma região, do mesmo país. Podemos ter a mesma religião, podemos ser europeus, mas podemos ser também mediterrânicos e cidadãos da terra”.

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