A Vida dos Livros

“O Método Montessori” de Agostinho da Silva

«O Método Montessori» de Agostinho da Silva (Inquérito, 1939) é um pequeno livro indispensável, que serve de mote para uma análise sobre a situação atual do panorama educativo português.

OLHOS NOS OLHOS

Nada é tão importante como a educação e a formação. Mas nada é mais difícil, uma vez que as medidas são muito exigentes, abrangendo a sociedade toda, apesar de haver a tentação para considerar que todos sabem do tema. Daí a facilidade nas simplificações, tantas vezes dominadas pela memória desfocada que muitos têm sobre o que foi para si a escola. Há tantas vezes uma lembrança ora nostálgica ora negativa, que leva a pensar que há receitas e soluções mágicas, na ilusão de que seria possível imaginar os estudantes como pequenos robôs humanos, aptos a fazer o que se idealizou para eles. Lembramo-nos de Locke afirmar que não há duas crianças que possam ser educadas por métodos semelhantes, concluindo que só uma educação aprimorada e exigente pode fazer distinguir positivamente as pessoas. E recordamos o que Maria Montessori disse sobre o papel do professor e do educador: “é, antes de tudo aquele que observa; a sua atitude fundamental e o gosto íntimo têm de ser a atitude e o gosto do sábio que passa horas observando, pacientemente, silenciosamente, com exatidão e calma, o fenómeno que se trata de estudar; ao professor que tinha por missão falar substituímos o professor que sabe calar-se; ao professor que se elevava substituímos o professor que se eleva; ao professor que tinha como virtudes o orgulho e a cólera substituímos o professor que tem como virtudes a humildade e a placidez”.

NÃO À INDIFERENÇA

Não se pense, porém, em indiferença ou passividade, mas em autoridade firme e serena, para dar espaço à liberdade e à responsabilidade. E essa observação atenta, esse cuidado são os modos necessários para tornar a aprendizagem fator essencial de desenvolvimento. Luísa e António Sérgio falavam, por isso, na República escolar de jovens cidadãos ativos, centrada na autonomia, na “educação social”, no exemplo, na singularidade e na cooperação e não em discursos morais abstratos e ilusórios… Neste tempo de pandemia, muito se discutiu o papel da escola. E muito se sentiu o peso dos equívocos e das ilusões. O problema é complexo e da maior importância: Estamos a falar de escolaridade obrigatória de 12 anos, de uma população escolar que abrange a sociedade toda, de exigências diversas e necessárias de ensino e formação, de uma obrigação de desenvolvimento incompatível com interrupções ou facilidades e da necessidade de garantir para as gerações em idade escolar uma aprendizagem de qualidade capaz de permitir a defesa do bem comum e um desenvolvimento sustentável no futuro. Contudo, vivemos um dilema, que se torna dramático, em especial para os níveis básicos da educação. Se dispomos de meios digitais de comunicação, a verdade é que a sua utilização tem efeitos assimétricos nos diferentes níveis de ensino. Na educação pré-escolar e no ensino básico, o ensino a distância, só por si, além de agravar as desigualdades, não tem resultados satisfatórios. Basta lembrarmo-nos do que citámos de Locke e Maria Montessori, mas poderíamos ir até aos gregos e romanos, para perceber que a presença na escola é essencial no desenvolvimento da criança.

A educação faz-se olhos nos olhos. Não é possível literacia, numeracia e educação social a distância. É indispensável a relação direta do educador com o educando. E aqui está o caráter dramático do dilema. Como vimos nas últimas semanas, só o confinamento obrigatório pôde reduzir, de facto, a transmissão da Covid-19. Mas houve, em dada altura, que fechar as escolas, para que a eficácia aumentasse. A decisão foi dilacerante e foi certo que assim se fizesse, mas importa ter em consideração os prejuízos tremendos, sobretudo para as crianças mais novas e para as famílias com menores recursos, o que vai obrigar a ter de se compensar essa providência excecional. E a situação é paradoxal. Segundo o que conhecemos da doença, pelo menos nas estirpes mais comuns, a frequência da escola é bastante segura – o que acontece é que estando a sociedade toda em movimento, é fora da escola que a transmissibilidade aumenta. Lembre-se que esta faz-se sobretudo dos adultos para as crianças e não na situação inversa ou entre crianças. Daí a necessidade de encontrar soluções que permitam ensino presencial na educação pré-escolar e no ensino básico básico com cuidados redobrados relativamente aos riscos de transmissibilidade entre adultos… Não haverá soluções ideais, mas é indispensável definir uma estratégia equilibrada entre a solução presencial e a utilização dos meios digitais e de comunicação. E aqui os ensinos secundário e superior apresentam condições favoráveis e de maior flexibilidade para o ensino a distância.

QUE MELHOR APRENDIZAGEM?

Mas falemos de uma situação concreta que nos aumenta as responsabilidades. Um dos indicadores fundamentais para se apurar a qualidade do esforço feito entre nós no sentido da melhoria da aprendizagem é a taxa de abandono escolar precoce. É um problema antigo que apenas pode ser tratado com medidas de fundo e de longo prazo. Segundo o INE, atingimos o melhor valor de sempre: 8,9%, sobretudo devido à persistência dos programas de apoio a escolas em territórios desfavorecidos. A intervenção em escolas TEIP foi decisiva. De facto, o objetivo de educação de qualidade para todos, definido pela UNESCO, obriga a intervir simultaneamente na criação de condições de exigência e de qualidade e nas situações em que haja risco de exclusão. E é este equilíbrio que suscita as maiores dificuldades, sobretudo quando uma situação de emergência, como a que atravessamos, ameaça dramaticamente o que já conseguimos com um esforço excecional. Se nas avaliações internacionais de qualidade temos progredido (graças à avaliação e ao trabalho realizado), esse esforço tem de ser completado pelo combate sem tréguas à exclusão. E a diferenciação positiva, tratando de modo distinto o que é diferente, é a chave para que haja justiça distributiva e combate às desigualdades. A coesão social só se alcança e consolida se começarmos por valorizar as pessoas pela educação e se tivermos um sistema fiscal capaz de garantir uma tributação justa da riqueza, capaz de mobilizar recursos para a prestação de serviços públicos de qualidade. Mas não basta as boas intenções. É necessário que na educação, na cultura e na ciência, nas escolas e nas instituições de serviço público haja compromissos com resultados e estímulos eficazes para o efeito – como a deteção oportuna das situações críticas, o acréscimo de horas letivas para superar dificuldades e atrasos, e o apoio de professores aos alunos em situação de risco.

O ABANDONO ESCOLAR

As políticas educativas ou são de longo prazo, com acompanhamento sério, com rigorosa e permanente avaliação de resultados de acordo com os objetivos propostos, ou não podem funcionar. Só há uma cidadania inclusiva, se agirmos nos campos da qualidade, da relevância e da equidade. Políticas educativas e sociais não se confundem, completam-se. Na educação pré-escolar ou nos TEIP, como na avaliação, o que houve, em Portugal, foi uma política de longo prazo definida desde os anos noventa e posta em prática graças ao planeamento, à concretização das medidas e ao acompanhamento e afinação dos resultados. Com efeito, qualquer política educativa (como na ciência ou na saúde) só pode apresentar resultados positivos consolidados uma vez transcorrido o prazo de uma geração, ou seja, nunca menos de vinte anos. E, naturalmente, o tempo pôde ir reforçando as medidas iniciais – designadamente através de mecanismos de deteção precoce dos casos de risco (assiduidade, comportamento, resultados escolares) e mercê do envolvimento das comunidades. Só assim os empregadores começam a ter consciência de que é melhor terem profissionais com mais e melhores formações, completas e relevantes, em vez de mão-de-obra mais barata, sem formação adequada ou incompleta. E nesse ponto o aperfeiçoamento e o alargamento do ensino profissional são essenciais. Portugal tem assim pela primeira vez um valor de abandono escolar precoce inferior à média da União Europeia, de 10,2% – apesar de haver disparidade ente as raparigas com 5,1% e os rapazes com 12,6%. Isto, enquanto a taxa de escolaridade no ensino superior ficou em 39,6% perto do objetivo europeu definido de 40%, o que também constitui um avanço significativo. Conclusão? Não podemos atrasar-nos. Importa prosseguir na concretização de objetivos audaciosos. Há motivos sérios de preocupação perante o dilema pandémico. Impõe-se que a economia e a sociedade estejam aptas a responder à estabilização da situação de saúde pública e ao prosseguimento dos avanços necessários da educação, na formação, na ciência e na cultura. Tudo se relaciona.

Guilherme d’Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

Subscreva a nossa newsletter