A Vida dos Livros

“O Drama de Magalhães e a Volta ao Mundo Sem Querer”

Quinhentos anos depois do início da viagem de Fernão de Magalhães, é tempo de tirar as lições certas, o que é possível com a leitura de “O Drama de Magalhães e a Volta ao Mundo Sem Querer” de Luís Filipe F.R. Thomaz (Gradiva, 2019).

UMA VIAGEM INESPERADA
Fernão de Magalhães é o mais conhecido e celebrado navegador da história universal – di-lo o autor da obra que referimos com inteira razão… Importa. Porém, tornar clara a razão dessa distinção. A frota de cinco navios, comandada pelo português Fernão de Magalhães, partiu de Sanlúcar de Barrameda, a 19 de setembro de 1519, e tinha como objetivo chegar às Ilhas de Maluco através do grande Oceano Pacífico. O extraordinário mérito de Fernão de Magalhães não foi, porém, segundo o Professor Luís Filipe Thomaz, a organização de uma viagem de circum-navegação do Globo, nem o ter provado a esfericidade da Terra, já conhecida desde Pitágoras (no século VI antes de Cristo), mas sim a fantástica travessia do Pacífico, por ninguém antes realizada ou sequer tentada. Se Vasco da Gama na descoberta do caminho marítimo para a Índia apenas navegou parcamente em costa ou território desconhecido – entre o Rio do Infante, de onde Bartolomeu Dias retornara depois de dobrar o Cabo da Boa Esperança e o Cabo das Correntes, perto de Inhambane, termo das navegações árabes e persas no Índico –, Magalhães apenas podia conhecer até ao rio da Prata na Argentina, percorrendo a partir daí um larguíssimo mar desconhecido, até atingir na Ásia, o arquipélago de S. Lázaro, a que Ruy Lopez de Villalobos chamou Filipinas, em 1542, em honra do Príncipe Filipe, filho de Carlos V, o nosso Filipe I. Magalhães usou a experiência e um método racional para navegar no Oceano desconhecido. Partindo do princípio que o regime de ventos deveria ser semelhante ao do Atlântico, rumou para norte, aproveitando os ventos alísios de sueste e a corrente de Humboldt, infletindo depois para oeste, até ao Equador, que passou a 13 de fevereiro de 1521, aproveitando a corrente equatorial para chegar em três meses às Filipinas, na proximidade das Molucas. Contudo, no dizer do historiador: se não tivesse morrido em combate com os nativos de Mactan (27.4.1521), Magalhães deveria ter regressado ao continente americano, pois estava impedido de fazer navegação na zona de influência de Portugal, segundo o Tratado de Tordesilhas. Aliás, a nau capitânia, Trinidad, sob o comando de Gonzalo Gomez de Espinosa, tentou atingir o Panamá, sem sucesso, sendo obrigada a regressar a Maluco e a render-se aos portugueses de Ternate, que depois de quatro anos de cativeiro libertaram e devolveram à Europa, a ferros… 

O FEITO DA NAU «VITÓRIA»
Foi a nau Victória (com 60 homens e uma carga de cravinho), comandada por João Sebastião de Elcano, a única a completar a volta ao Mundo, seguindo uma rota desconhecida e muito perigosa em zona de influência portuguesa. Começaram por Timor, que só viria a tornar-se protetorado português em 1642, donde se dirigiram diretamente ao cabo da Boa Esperança pelo mar do sul, evitando Moçambique, numa proeza de grande perigo, que durou nove semanas, dobrando o Cabo das Agulhas, ponto mais meridional de África, a 15 de maio de 1522, entrando no Atlântico Sul. Em 9 de julho, chegam a Santiago, arquipélago de Cabo Verde, para se refrescarem, apresentando-se como perdidos à volta das Antilhas e omitindo donde vinham. Não puderam, assim, adquirir alimentos, mas venderam cravinho, o que causou naturais suspeitas… Por isso, uma dúzia de homens que tinham ido a terra foram presos, sendo libertados poucas semanas mais tarde. Finalmente, a 6 de setembro de 1522, aportaram a Sanlúcar de Barrameda, ao fim de dois anos, onze meses e dezassete dias de atribulada viagem. Além do erro de um dia, que muito admirou Elcano em Cabo Verde, resultante de as navegações terem sido feitas de este para oeste, ao contrário do que aconteceu com Phileas Fogg, que viajou em sentido contrário e ganhou um dia. Pedro Mártir de Angléria, humanista da corte de Castela, esclareceria o problema, uma vez que fazendo o navio uma navegação para ocidente atrasar-se-ia a cada 15 graus de longitude uma hora em relação ao tempo solar no ponto de partida… O outro problema tinha a ver com a ideia de Fernão de Magalhães de que as Molucas ficariam no hemisférico de Castela, o que não correspondia à realidade por um pequeno erro de cálculo. O pomo da discórdia foi, de facto, o das ilhas de Maluco, onde os mercadores javaneses e portugueses fizeram desenvolver as plantações de cravo, cravinho, cravo-girofo, cravo-da-índia e cravo-de-cabecinha, além da noz-moscada… Os portugueses foram muito bem recebidos em Ternate e Tidore (outrora, como nos nossos dias, veja-se o nosso “Na Senda da Fernão Mendes”). 

O HEMISFÉRIO PORTUGUÊS
De facto, as Molucas estavam no hemisfério português. E tudo leva a crer (como confirma João de Barros) que Francisco Serrão terá exagerado em carta ao seu amigo sobre a distância de Malaca às Molucas. E diz o Luís Filipe Thomaz: “é importante notar que, após a sua travessia do Pacífico, (Magalhães) aterrou a 16 de março de 1521, na ilha filipina de Samar, sita a c. 125 graus. E por conseguinte, dois graus a oeste da posição real das ilhas de Maluco, nove e meio da que no seu memorial a el-rei D. Carlos lhes atribuíra. Bom marinheiro como era, é provável que se tenha de imediato apercebido do erro. Se assim foi, deve ter-se sentido frustrado, senão perdido: traíra el-rei de Portugal para provar que as Molucas pertenciam de direito ao reino comarcão; restava-lhe agora o dilema: ou dar a mão à palmatória, traindo el-rei de Castela, ou obstinar-se no erro e trair assim a sua própria consciência”. Aqui poderemos especular. A angústia e o amor-próprio inibiram-no de rumar ao objetivo da expedição. E deambulou pelas Filipinas, até encontrar a morte em resultado de uma inútil escaramuça tribal. “E assim feneceu tragicamente a vida de um homem que foi quiçá o mais ousado navegante da história da Humanidade”. Deve-se a António Pigafetta (1492-1531), que acompanhou a viagem toda, o relato da viagem à volta do mundo: «Relazione del Primo Viaggio Intorno Al Mondo», composta em italiano e publicada Paris (1525). Contudo, uma publicação integral do relato só seria feita em fins do século XVIII, tendo-se perdido o documento original. Entretanto, foi através de uma narrativa anterior, de autoria de Maximianus Transylvanus de 1523, que os europeus tiveram informações da primeira circum-navegação da Terra. Na qualidade de Secretário do Imperador Carlos V, Transylvanus recebeu instruções para entrevistar os sobreviventes da expedição de Magalhães quando a nau Victória retornou à Espanha. Em suma, a gesta de Fernão de Magalhães assume uma importância fundamental, menos pela circum-navegação (corajosamente terminada por Elcano, mas não planeada) e mais pelo facto de os dois Estados Ibéricos terem criado as condições para a percursora descoberta global da Terra.

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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