A Vida dos Livros

No centenário de José Saramago recordamos a sua viagem ao Porto em “Viagem a Portugal”

No centenário de José Saramago recordamos a sua viagem ao Porto em “Viagem a Portugal”.

HONRAR O NOME DO PORTO

Para José Saramago na “Viagem a Portugal”, o “Porto, para verdadeiramente honrar o nome que tem é, primeiro que tudo, este largo regaço aberto para o rio, mas que só do rio se vê, ou então, por estreitas bocas fechadas por muretes, pode o viajante debruçar-se para o ar livre, e ter a ilusão de que todo Porto é Ribeira. A encosta cobre-se de casas, as casas desenham ruas e, como todo o chão é granito sobre granito, cuida o viajante que está percorrendo veredas de montanha”. Adivinham-se antepassados pescadores das mulheres que passam, e lembram-se ainda calafates, carpinteiros de barcos, tecelões de panos de velas, cordoeiros e, naturalmente, canastreiros. Daqui houve nome Portugal. A história antiga é de uma cidade-estado, a única portuguesa, fazendo parceria com Gaia e Vila Nova. A história está cheia de vicissitudes, desde a presúria de Vímara Peres à intervenção da Armada heroica dos gascões. Foi D. Teresa quem concedeu ao bispo D. Hugo o couto da cidade em 1111, o que permitiria uma durável autonomia. D. Fernando chamou-lhe Paraíso e o mestre de Avis teve o apoio dos seus povos e mesteres para a sua causa. Aqui se casaria D. João com D. Filipa de Lencastre e nasceria o Infante D. Henrique. E diz a lenda que o sacrifício imposto pela preparação da armada de Ceuta, deixou apenas as “tripas”, depois tornadas acepipe, para alimentação dos portuenses… E não se esquece a designação de Cidade Invicta, outorgada por D. Maria da Glória, a rainha que o povo adotou, a lembrar a heroica resistência no Cerco do Porto (1832-33), depois da chegada dos Bravos do Mindelo e da hospitalidade cidadã – a lembrar o que Garrett dizia: nós os do Porto podemos trocar os bb pelos vv, mas nunca a liberdade pela tirania… E D. Pedro não esqueceria esse povo extraordinário, oferecendo à população do Porto o seu coração, que a igreja da Lapa alberga. 

PARTINDO DA SÉ

«O viajante está no largo da Sé, olhando a cidade. É manhã cedo. Veio aqui para escolher caminho, decidir um itinerário. A Sé ainda está fechada, o paço episcopal parece ausente. Do rio vem uma aragem fria. O viajante deitou contas ao tempo e aos passos traçou mentalmente um arco de círculo, cujo centro é este terreiro, e achou que quanto queria ver do Porto estava delimitado por ele. Não tem, em geral, assim tantas preocupações de rigor. E provavelmente virá a infringir esta primeira regra. No fundo, aceita os princípios básicos que mandam dar atenção ao antigo e pitoresco e desprezar o moderno e banal. Viajar desta maneira por cidades e outros lugares acaba por ser uma disciplina tão conservadora como visitar museus: segue-se por este corredor, dá-se a volta a esta sala, para-se diante desta vitrina ou deste quadro durante um tempo que a observadores pareça suficiente e comprovativo das bases culturais do visitante, e continua-se, corredor, sala, vitrinas, vitrina, sala, corredor… (…) Por estar fiando estes pensares é que decidiu começar a sua volta descendo as Escadas das Verdades, aquelas que por trás do paço episcopal vão descendo, em quebra-costas para o rio. São altos os degraus, maus de descer, piores ainda de subir. Que razões terão sido a deste batismo, não sabe o viajante, tão curioso de nomes e das origens deles (…). Por estas encostas andam subindo e descendo gentes desde os tempos do conde Vímara Peres (…). Aqui em baixo é a Ribeira. O viajante passa sob o arco da Travessa dos Canastreiros, boa sombra para Verão, mas agora gélida passagem, e durante meia manhã andará por este Bairro do Barredo, a ver se aprende de vez o que são ruas húmidas e viscosas, cheiros de fossa, entradas negras de casas» …

TEATRO GRANÍTICO

O viajante deixa-se deslumbrar pela cidade acantonada no teatro granítico de socalcos a partir da Ribeira. Calcorreia as calçadas de granito e homenageia os artistas, no museu que leva o nome de Soares dos Reis, no Palácio das Carrancas. A “Virgem do Leite” de frei Carlos é talvez “a obra mais importante que se guarda aqui”, mas o coração do viajante tem um lugar especial para Henrique Pousão e Marques de Oliveira. E, de regresso à Sé, entra nos Clérigos e considera que a cidade não reconhece devidamente a importância de Nasoni. Se Fernão de Magalhães é eternizado por uma ampla avenida, Nasoni e a sua injustamente pequeníssima rua “riscou no papel viagens não menos aventurosas: o rosto em que uma cidade se reconhece a si própria”. E na Sé, mais do que a robustez e o orgulho militar, merece glorificação a galilé de Nasoni que tão bem integrada aparece no conjunto. E é Nasoni o herói, sem dúvida, desta visita: “este italiano, criado e educado entre mestres de outro falar e entender”, que “veio aqui escutar que língua se falava no Norte português e depois passou-a à pedra”. “O interior da igreja avulta pela grandeza das pilastras, pelo voo das abóbadas apontadas”. E saindo da Sé o viajante olha os telhados do Barredo e descobre a fonte do pelicano, temendo, porém, pela sua conservação e perenidade… “Quando o viajante estiver de partida, tornará a ir à Fonte do Pelicano, olhará aquelas iradas mulheres que presas à pedra se desafiam, saberá que há ali um segredo que ninguém lhe saberá explicar, e é isso que leva do Porto, um duro mistério de ruas sombrias e casas cor de terra, tão fascinante tudo isto como ao anoitecer as luzes que se vão acendendo nas encostas, cidade junta com um rio que se chama Doiro”…

Guilherme d’Oliveira Martins

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