Natal com Letras
Era o Natal de 1658. Lá fora estava um vento agreste e frio, quatro homens-livros estavam reunidos numa tertúlia animada na qual se discutia o destino da literatura. Representavam vários tempos. Trajano Bocalino, Justo Lípsio, Francisco Quevedo e o próprio D. Francisco Manuel de Melo. E estavam chegados a um ponto em que veio à baila o modo de celebrar as Natividades. Todos concordaram em que essas celebrações eram sobretudo necessárias para aquietar os espíritos. Havia que moderar a vida agitada com uma celebração centrada na recordação de um tempo de conciliação e de generosidade. Os quatro participantes reuniam argumentos, lembrando a vida agitada que o tempo lhes reservava. Junto da mesa em que falavam, havia um presépio feito a preceito com imagens de barro cuidadosamente pintadas em tons coloridos. Uma gruta albergava as imagens do Menino, de Maria e de José, e em volta havia pastores e músicos, e os três reis portadores do proverbial ouro, do incenso e da mirra, entre musgo e plantas coloridas. Em determinado momento, D. Francisco Manuel apontou a tal mesa com imagens e adornada de flores e perguntou: – Sabiam que foi o rei português D. João II que solicitou ao célebre Lourenço de Médicis a vinda à sua Corte de um escultor e arquiteto modelador de terracota de nome Contucci Sansovino? Foi ele quem ensinou aos primeiros barristas portugueses a arte de fazer imagens que pudessem representar a Natividade na vida das aldeias e dos povos, em nome da ideia de Mistério e de Boa vontade. Considero, acrescentou D. Francisco, que esta tradição representa o desejo franciscano português de tornar as tradições vivas. Julgo que aqui temos o símbolo de uma representação que é mais rica do que qualquer reflexão escrita e pensada sobre o Mistério divino. E Francisco Quevedo logo lembrou a ironia de um curioso poema da autoria de Jerónimo Baía, que era talvez mais eloquente do que a representação singela de um presepe.
Tratava-se de encarar o Menino Deus como metáfora de doce. Mais do que qualquer lucubração, importaria apelar às virtudes supremas do paladar. «Quando este Menino / É doce coberto, / É manjar divino? / – Diga o como é doce, / Que ignoro o prodígio. / – Não sabe o mistério? / Ora vá ouvindo: / Muito antes de Santa Ana / Teve este doce princípio, / Porque já do Salvador / Se davam muitos indícios. / Mas na Anunciada dizem / Que houve mais expresso aviso, / E logo na Encarnação / Se entrou por modo divino. / Esteve pois na Esperança / Muitos tempos escondido. / Saiu da Madre de Deus, / Depois às Claras foi visto. NATAL com Letras / Fazem dele estimação / As freiras com tal capricho, / Que apuram para este doce / Todos os cinco sentidos. / Afirmam que no Calvário / Terá Seu termo finito, / Sendo que no Sacramento / Há de ter novo artifício. / Que seja doce este Infante, / A razão o está pedindo, / Porque é certo que é morgado, / Sendo unigénito Filho! / Exposto ao rigor do tempo, / Quando tirita nuzinho, / Um caramelo parece / Pelo branco e pelo frio. / Tal doce é, que porque farte / Ao pecador mais faminto, / Será de pão com espécies, / Substancial doce divino. / É manjar tão soberano, / Regalo tão peregrino, / Que os espíritos levanta, / Tornando aos mortos vivos. / Tão delicioso bocado / Será de gosto infinito, / Manjar real, verdadeiro, / Manjar branco parecido! / Que é manjar dos Anjos, dizem / Talentos mui fidedignos, / Por ser pão-de-ló, que aos Anjos Foi em figura oferecido”.
Riu Quevedo em cada verso lido e ouvido, mas logo o português esclareceu que era mais do que uma metáfora de doce, pois cada uma das referências significava um lugar da cidade de Lisboa. Era de uma caminhada urbana que se tratava – Anunciada, Encarnação, Madre de Deus, e a Esperança até ao Calvário. Bocalino admirou-se, como era possível, ligar os apetitosos doces aos lugares da urbe. E atalhou Justo Lípsio, do alto da sua autoridade, que havia duas maneiras de escrever a História, ora que fosse austera e incorrupta, sem que o escritor pusesse de sua casa mais do que o estilo, como aconteceu com Tito Lívio ou Tucídides. Pelo contrário, Tácito ou Xenofonte consideraram entrepor o seu juízo em lugar dos alheios ou prolixos. Quevedo e Francisco Manuel estavam admirados, e olharam um para o outro.
De um debate simples sobre o Natal emergiam tantas e tão desencontradas considerações. E Lípsio continuava: a classe dos romanos dividiu-se em parciais sentimentos, julgando uns que a História se havia de escrever pura, e outros ornada…. É, pois, lícito salpicar de sentenças, observações e juízos a História, mas com tal siso e mesura, que não seja o esmalte mais que o ouro, sob pena de degenerarem os historiadores em discursadores. A conversa seguia, como num complexo jogo de argumentos. As figuras de barro animavam-se. Trajano Bocalino juntava mais um argumento. Ele era um escritor satírico que governou algumas cidades dos estados pontifícios. Foi um dos poucos que compreendeu o seu contemporâneo Nicolau Maquiavel e por isso considerou que apenas valia a pena olhar para aquela representação natalícia com o ruído próprio de uma feira. E assim falou dos músicos e dos cómicos que acompanhavam os pastores e os cantos dos querubins e serafins, tronos, dominações e arcanjos. Justo Lípsio calou-se por um momento, Quevedo procurou compreender o que se passava, Francisco Manuel insistiu na ideia de que o presépio era uma verdadeira representação de como as pessoas viam o mundo. Trajano Bocalino apurou o ouvido e confidenciou que ouvia qualquer coisa, quanto mais não fosse algumas vozes, mas sobretudo ritmos e melodias. Justo Lípsio admirou-se na sua racionalidade, Quevedo relia afanosamente a metáfora em doce e saboreava intimamente as iguarias descritas no poema de Jerónimo Baía.
Por um momento, foi o cómico que começou a marcar a tertúlia com o seu apelo à ironia e ao humor. Importava ouvir os músicos e os funâmbulos e apurar o ouvido para compreender que o presépio era um lugar de alegria, mais do que de circunspeção, de liberdade, mais do que de tristeza. D. Francisco Quevedo foi dos primeiros a compreender esse facto elementar, seguindo Francisco Manuel de Melo e Bocalino. Apenas faltava convencer o circunspecto Justo Lípsio. Afinal, quem seriam os protagonistas daquele teatro vivo? Bocalino perguntou então: – quem pode negar que a estrela que guiou os magos não é a marca do triunfo contra o mais vivo inconformismo. A noite já ia alta e aqueles homens-livros, num dos mais estranhos debates que seria possível fazer, foram-se aproximando uns dos outros e de uma mesma ideia: a de que a ironia e o inconformismo tinham de vencer.
A voz de Bocalino era alegre e prazenteira, Justo Lípsio ia-se deixando convencer, pois, que o presépio poderia simbolizar a imaginação e a liberdade como sinais da vida humana. E o Menino rodeado de luz atraía o amor, a aventura e a criatividade. De súbito, Bocalino perguntou a Justo Lípsio: Não ouve o som inconfundível das gaitas de foles e o ritmo dos tambores? Quevedo acrescentou: Não há dúvidas, o som é cada vez mais nítido. E D. Francisco Manuel exclamou: é muito óbvio! Até que finalmente: Justo Lípsio deixou nítido no ar: – Já oiço, já oiço… E todas as figuras de barro pareciam mover-se freneticamente. Havia movimento! Era o Natal de 1658… (Inspirado no “Hospital das Letras” de Francisco Manuel de Melo, nos “Apólogos Dialogais”).
Guilherme d’Oliveira Martins