A Vida dos Livros

“Manuel Amado – Pintura sem Álibi”

Em “Manuel Amado – Pintura sem Álibi” (Fundação Arpad Szènes – Vieira da Silva, 2020) encontramos um artista que nos interroga sobre a essência da Arte na relação essencial com o espaço.

UMA ORIENTAÇÃO INCONFUNDÍVEL
A exposição “Manuel Amado – Pintura sem Álibi” na Fundação Arpad Szenes – Vieira da Silva integra obras da coleção Millenium – BCP e algumas de particulares, permitindo uma visão compreensiva sobre o essencial da linha criativa do artista, que há pouco nos deixou. E pode dizer-se que a independência criativa de Manuel Amado permite-nos, a um tempo, encontrar uma orientação inconfundível, mas igualmente um retrato do tempo atual, de uma sociedade fantasmática, onde a ausência de presença humana, nos remete para o essencial das formas e dos espaços. Daí o carácter paradoxal do espírito criador, que propositadamente vai ao essencial do mundo, cabendo ao pintor a capacidade de se fazer entender e de colocar na obra que apresenta ou na relação com a natureza o modo de fazer viver a arte. A Manuel Amado interessava sobretudo o espaço. Como disse em entrevista a Marta Ferreira dos Reis no Público: “Se puser uma pessoa, até pode estar sentada a ler muito quietinha, mas está parada, porque tem de estar parada na pintura. Metendo uma personagem, aquela imagem que a gente vê tem um tempo reduzido. Se não está lá ninguém, aquela imagem pode durar meia hora, uma ou duas horas, que não faz diferença nenhuma. A personagem introduziria o fator tempo, que é uma coisa que não me interessa” (2007). Ao contrário do caso de Edward Hopper, o fator tempo é expurgado nas evidências de Amado. Sentem-se influências de Chirico e Matisse, mas também uma certa demarcação de Magritte e Morandi. E segundo Mariana Pinto dos Santos, curadora da exposição, o artista “Opta pela clausura dos espaços para o exercício de outra ideia de liberdade, uma que passa pela encenação necessária da rememoração dos lugares dos afetos, aos quais não se pode regressar”. A pintura pára o tempo. E é aqui que o paradoxo se manifesta claramente. É certo que o pintor confessa a Maria João Seixas que a sua “é uma pintura sem literatura por trás. São imagens feitas de encontros e recordações, que se calhar evocam aos que olham para as minhas telas outros tantos encontros e recordações. Não há qualquer outra carga para além das coisas representadas” (Pública, 2007). Aqui está porventura um curioso engano, de que o teatro está cheio, ditado pela tensão entre a imagem e a memória. Será talvez verdade que se trata de uma pintura sem literatura por trás, contudo porque está impregnada de literatura na sua expressão mais pura e genuína. A literatura está, pois, presente essencialmente e não fora. Manuel Amado, filho de um grande homem de teatro, para quem a literatura seria sempre representação. Nesse ponto a expressão artística, qualquer que seja, confunde-se com a narrativa e com a vivência da  memória. Que é o teatro senão a literatura viva, e não algo que dissimula a narrativa? E o pintor, fascinado pela representação e pela expressão cénica, põe a narrativa não numa paráfrase mas na apresentação do próprio espaço. Não por acaso, Almada Negreiros, grande amigo de Fernando Amado, o pai, tem no teatro a melhor expressão do seu génio literário. Deste modo, a lição do diálogo presenciado pelo jovem Manuel Amado entre seu pai e Almada, em especial no Centro Nacional de Cultura e na Casa da Comédia, permite-nos entender o paradoxo que assume e a marca original da obra do artista plástico.

UM PACIENTE ARTESANATO
De facto, Vítor Silva Tavares tem razão ao afirmar, claramente: “Não sobeja parte de casa para confidências ou leituras paralelas: exata, nítida, esta pintura manifesta-se ao olhar em seu paciente artesanato. É o que é – o real na pintura ou a pintura sem álibi” (1984). É uma pintura sem pretextos, sem justificações. Mariana Pinto dos Santos escolheu, por isso, muito bem este título para a exposição, pondo a tónica na realidade, reconhecendo a etimologia da palavra quase policial alius ibi, outro lugar. A pintura de Manuel Amado não tem, porém, outro lugar, ela própria corresponde, em si mesma, ao que pretende representar. E o teatro está bem presente, no espaço, no cenário, no acolhimento de quem vai dialogar como se fosse na vida real, ou como é, de facto, na vida real. Se falei de paradoxo, devo ainda referir ambiguidade. Arte, teatro e vida, misturam-se. E “Manuel Amado lamentou profundamente que o pai, morto em 1967, não tivesse visto a sua pintura a não ser numa fase muito inicial, tão pouco Almada Negreiros, que elegeu o teatro e as personagens da Commedia dell’Arte como arquétipos da sua arte. E que ambos não tivessem chegado a notar a dívida que a sua arte teria ao teatro”. E não podemos esquecer, na peça de Almada Antes de Começar, Lourdes de Castro (figura histórica do Centro Nacional de Cultura) a contracenar, numa reposição, com o próprio Manuel Amado no ACARTE na Fundação Calouste Gulbenkian em 1984. E quando Amado fez a série O espetáculo vai começar, Lourdes Castro escreveu talvez uma das melhores sínteses que podemos encontrar sobre a obra do pintor, muito para além da série em causa: “Aplausos, aplausos. O Manuel voltou ao teatro. Ao mundo do teatro. Ao teatro vazio”. E o certo é que esse vazio corresponde, na expressão de Emily Dickinson, a uma “força que renova o mundo”. Eduardo Prado Coelho tinha razão ao falar de uma pintura “que ensina a repousar de todas as mensagens” e Eduardo Lourenço ao referir uma pintura sem “deus dentro”. Sempre o culto do paradoxo. As evidências revelam vitalidade e movimento. Além das invocações da Estrada da Comenda, como metáfora do caminho e da renovação, encontramos na exposição das Amoreiras exemplos da série Comboios, Estações e Apeadeiros (1986),de A Casa sobre o Mar (1992), de A Grande Cheia (1996), ou de O espetáculo vai começar (2004-2007)… A cada passo, encontramos o exercício do puro prazer da procura dos espaços. Mas, não há artista sem enigma e não há mostra sem mistério, daí a importância de uma obra que, parecendo contrariar o conjunto, não faz mais do que confirmá-lo plenamente. Falo de Homem sentado de costas (ou O meu pai sentado de costas), de 1967. Não é uma exceção, mas uma confirmação premonitória. “Metendo uma personagem, aquela imagem que a gente vê tem um tempo reduzido” – dirá o pintor. Mas neste caso, propositadamente tem todo o tempo do mundo, acaba de partir e é, por isso, a eternidade que aqui se encontra representada, numa memória jamais esquecida. Que é o teatro senão a capacidade de ir ao encontro da representação da vida tal qual é, e neste caso sem a ilusão de se confundir com outro lugar?…

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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