A Vida dos Livros

Literatura e Cidadania

“Literatura e Cidadania” será o curso que o Centro Nacional de Cultura organizará a partir de fevereiro. Apresentamos hoje a respetiva introdução para conhecimento dos interessados.

Ilustração de Fernando Bento para o “Boletim Cultural das Bibliotecas Itinerantes da Fundação Gulbenkian”

CINCO TEMAS

A série “Literatura e Cidadania” refere-se à língua portuguesa, sendo organizada em cinco sessões do seguinte modo. “As raízes e as origens – dos Trovadores ao Cancioneiro Geral” começa por analisar o modo como a literatura constituiu um importante esteio para a afirmação da identidade cultural, sendo decisivo o papel desempenhado pelo rei D. Dinis, como poeta na tradição de seu avô o rei Afonso X, o Sábio, de Leão e Castela. O tema de “Os Contos Tradicionais – de Bernardim à Peregrinação” pretende entender o “melting pot” social e cultural projetado na criação literária, desde os Nobiliários, das Crónicas e das tradições narrativas locais até à reflexão de ideias e às experiências romanescas, que articulam o lirismo e a história trágico-marítima evidenciados nas origens da literatura ou na dramaturgia de Gil Vicente, em ligação com a originalidade dos relatos de viagem, onde Fernão Mendes Pinto se singulariza. Já em “A Literatura e a Oratória – de Camões a Vieira” vamos encontrar a maturidade da língua portuguesa, primeiro na poesia com o genial épico e depois na prosa, através da oratória vieirina, que em muito supera os temas religiosos, traduzindo-se na afirmação de um pensamento ético e cívico, bem evidente ao longo da riquíssima produção literária. O quarto capítulo refere-se à evolução “Das Luzes ao Romantismo: Garrett, Herculano e a Geração de 70 – plantadores de Modernidade”, pretendendo uma análise ampla da idade romântica, na linha analítica de José-Augusto França, desde o século de D. João V e do consulado de Sebastião José, abrangendo a passagem de testemunho de D. Luís da Cunha e a preparação e afirmação do constitucionalismo liberal e do espírito regenerador – numa Europa profundamente influenciada pela necessidade de uma síntese entre idealismo e realismo, entre tradição e modernidade. Assim, além de Garrett e Herculano, Camilo, Júlio Dinis, Eça de Queiroz e Antero de Quental serão as referências marcantes de uma Literatura claramente orientada para uma cidadania crítica e ativa. O quinto capítulo intitulado “A ‘Renascença Portuguesa’ raiz da modernidade – ‘Orpheu’ sinal de futuro” reportar-se-á à génese e desenvolvimento do século XX, marcado por tons claros e escuros, nos quais o período ditatorial deixa na penumbra a cultura, que renasce em 1974, graças à democracia  e à prevalência do pluralismo, que foi favorecendo uma síntese muito rica, num mundo global em que a língua portuguesa, falada nos vários continentes, mas profundamente diversa, se enriqueceu mutuamente em diálogo com outras culturas. A presença fulgurante de Fernando Pessoa e a atribuição do prémio Nobel a José Saramago culminaram a afirmação de um conjunto rico de escritores da língua portuguesa, que demonstraram significativa criatividade.

UMA IDENTIDADE ABERTA E PLURAL

A decisão de adotar o galaico-português como língua oficial para os tabeliães e o Direito constituiu um impulso decisivo para a independência do Reino de Portugal. Pode mesmo dizer-se que a cultura se associou à definição pioneira das fronteiras em Alcanizes (1297) e à definição centralizadora do poder real em aliança com o poder municipal. A afirmação da literatura faz-se depois pela originalidade e força criadora de um Fernão Lopes, e pela articulação entre a forte tradição lírica e a necessidade de a projetar nos contos tradicionais, com ligações europeias, no contexto do fundo céltico e do ciclo bretão sob a influência do rei Artur, de Amadis de Gaula ou do Palmeirim de Inglaterra. Encontramos a procura de uma absoluta originalidade que se afirmará na “Peregrinação” em complemento da renovação apresentada por Cervantes. Entretanto, a lírica e a épica de Camões representam, com solidez, a maturidade de uma identidade cultural aberta, capaz de articular o maravilhoso cristão e o maravilhoso pagão, com reencontro das raízes clássicas gregas e latinas, em especial através da influência de Virgílio. Complementarmente, o Padre António Vieira supera significativamente uma lógica providencialista ou messiânica (diríamos sebastianista), concebendo a História do Futuro como uma artificiosa relação entre vontade e vocação universalista do humanismo enquanto cultura de convergência e de paz, como se vê numa leitura atenta da “Clavis Prophetarum”. A Monarquia dual ibérica e a Corte na Aldeia (1580-1640) suscitam uma literatura de resistência a que sucede um tempo marcado pelas riquezas vindas da exploração do ouro brasileiro, depois das tentativas sem sucesso de atrair os cristãos-novos emigrados através da ação de Vieira.

PERSPETIVAS DE MUDANÇA

O século XVIII português abriu perspetivas de mudança, que as guerras peninsulares interromperam ou perturbaram até à independência do Brasil. No entanto, a criatividade literária desenvolveu-se pelo reconhecimento progressivo das liberdades públicas – desde a Arcádia, envolvendo a Marquesa de Alorna ou Bocage, na importante transição do classicismo para o romantismo, abrindo-se novos caminhos, que culminaram, depois da Revolução constitucionalista liberal (1820), na emigração política e na guerra civil que irão marcar o Romantismo, como realidade complexa, de múltiplas influências e resultados. É o tempo em que Garrett e Herculano marcam um percurso de cidadania e de modernidade, assente na determinação e na vontade, para pôr Portugal ao ritmo da Europa, sem esquecer as suas raízes culturais e históricas. A conferência de Antero de Quental sobre “As Causas da Decadência dos Povos Peninsulares” no Casino Lisbonense constitui um marco essencial no anúncio das novas tendências que o século XX concretizará. A “Renascença Portuguesa”, após a implantação da República, albergará no seu seio Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e António Sérgio – o saudosismo, “Orpheu” e a “Seara Nova”. O código genético do século XX cultural português definir-se-á através de uma matriz plural. A língua portuguesa, com uma afirmação global no mundo, abrangerá, assim, uma ampla diversidade cultural, cuja riqueza é tanto maior quanto melhor pudermos compreender essa complexidade. De José Régio a Sophia, de Cardoso Pires a Saramago e António Lobo Antunes, de Jorge Amado a Mia Couto, de Guimarães Rosa a Pepetela e Germano Almeida as diferenças marcam as complementaridades…

Guilherme d’Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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