A ESTRANHA NOSTALGIA DA ESCRAVIDÃO
Por Guilherme d’Oliveira Martins
Vivemos
um tempo de grande angústia e incerteza. As guerras multiplicam-se e os
sinais de intolerância são cada vez mais evidentes. O Papa Francisco
afirma que «o êxodo da escravidão para a liberdade não é um caminho
abstrato. A fim de ser concreta também a nossa vida, o primeiro passo é
querer ver a realidade. Quando o Senhor, da sarça ardente,
atraiu Moisés e lhe falou, revelou-Se logo como um Deus que vê e
sobretudo escuta: “Eu bem vi a opressão do meu povo que está no Egito, e
ouvi o seu clamor diante dos seus inspetores; conheço, na verdade, os
seus sofrimentos. Desci a fim de o libertar das mãos dos egípcios e de o
fazer subir desta terra para uma terra boa e espaçosa, para uma terra
que mana leite e mel” (Ex 3, 7-8). Também hoje o grito de
tantos irmãos e irmãs oprimidos chega ao céu. Perguntemo-nos: E chega
também a nós? Mexe connosco? Comove-nos? Há muitos fatores que nos
afastam uns dos outros, negando a fraternidade que originariamente nos
une».
Mas será que tomamos consciência da importância destes
fatores que constantemente nos afastam uns dos outros? À indiferença
sobre o bem comum soma-se a ilusão de que há soluções salvadoras e
discursos abstratos que apenas escondem ilusões e mentiras. No entanto,
olhando em volta verificamos milhares de vítimas nas guerras que têm
lugar e afetam povos inocentes, a começar nas crianças: na guerra da
Ucrânia há quase 10 mil mortos em dois anos de violência cega; no
conflito Israel / Hamas em Gaza contam-se 20 mil mortos; e somam-se
milhares de vítimas no Burkina Faso, na Somália, no Sudão, em Mianmar,
na Nigéria, na Síria e no Iémen. Assistimos a uma guerra mundial em
pedaços. O direito internacional e a dignidade humana são desprezados.
Ninguém ouve o que S. João XXIII disse na encíclica “Pacem in Terris”
dirigida a todos os homens e mulheres de boa vontade. Onde está a
compreensão e o respeito dos direitos e deveres das pessoas? Afinal, é a
nostalgia da escravidão que prevalece.
O Papa Francisco
recorda-nos que na viagem a Lampedusa, contrapôs à globalização da
indiferença duas perguntas, cada vez mais atuais: «Onde estás?» (Gn 3, 9) e «Onde está o teu irmão?» (Gn 4,
9). Ora, o caminho quaresmal obriga a ouvir essas perguntas. A terra, o
ar e a água estão poluídos, mas as próprias almas também estão
contaminadas. Infelizmente, porém, há a tentação de nos deixarmos
escravizar, pelos falsos mitos, pelas mistificações, pela facilidade,
pelos robôs e máquinas que tendem a dominar-nos. Ficamos inebriados
pelos modelos ilusórios. «Para isso (diz-nos o Papa) há que diminuir a
velocidade e parar. Assim a dimensão contemplativa da vida, que a
Quaresma nos fará reencontrar, mobilizará novas energias. Na presença de
Deus, tornamo-nos irmãs e irmãos, sentimos os outros com nova
intensidade: em vez de ameaças e de inimigos encontramos companheiras e
companheiros de viagem. Tal é o sonho de Deus, a terra prometida para a
qual tendemos, quando saímos da escravidão». E se diminuímos a
velocidade passamos a ter tempo para olhar o nosso próximo e para
compreendê-lo para além das redes sociais e do ruído que nos distrai e
torna indiferentes. As perguntas que o Papa fez em Lampedusa põem-nos
diante das questões concretas. Esquecemo-nos de que vivemos um momento
em que o método sinodal da Igreja tem de ser assumido, como partilha
comunitária, como troca de experiências e de perguntas. Importa refletir
sobre o caminho que devemos seguir, distinguindo diferentes escolhas e
pondo em comum o que pode unir-nos. Tal deve sugerir, como propõe o
Papa, que “a Quaresma seja também tempo de decisões comunitárias,
de pequenas e grandes opções contracorrente, capazes de modificar a
vida quotidiana das pessoas e a vida de toda uma coletividade: os
hábitos nas compras, o cuidado com a criação, a inclusão de quem não é
visto ou é desprezado”. E quando ainda está na nossa memória a Jornada
Mundial da Juventude, devemos lembrar as palavras que os estudantes
universitários ouviram em Lisboa e que agora são recordadas e ganham uma
importância renovada: «Procurai e arriscai; sim, procurai e arriscai.
Neste momento histórico, os desafios são enormes, os gemidos dolorosos:
estamos a viver uma terceira guerra mundial feita aos pedaços. Mas
abracemos o risco de pensar que não estamos numa agonia, mas num parto;
não no fim, mas no início dum grande espetáculo. E é preciso coragem
para pensar assim». Não ter medo significa assumir generosamente a
compaixão e o cuidado com os outros. No fundo, o que está em causa é a
coragem da conversão, como saída voluntária da escravidão que está em
causa. A fé e a caridade guiam pela mão a esperança do encontro e a
compreensão do que ainda nos falta. Precisamos de caminhar com a
segurança necessária dos passos firmes e corajosos – capazes de nos
conduzir no sentido da atenção aos outros e do cuidado que lhes é
devido.
Não esqueçamos, afinal: «Quando o nosso Deus Se revela,
comunica liberdade: «Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fiz sair da
terra do Egipto, da casa da servidão» (Ex 20, 2). Assim se
inicia o Decálogo dado a Moisés no Monte Sinai. O povo sabe bem de que
êxodo Deus está a falar, porque traz ainda gravada na sua carne a
experiência da escravidão. Por que razão o esquecimento é tão marcado?
Lembrar o Papa Francisco
O Centro Nacional de Cultura homenageia sentidamente a memória do Papa Francisco no momento em que nos deixa fisicamente, ficando muito vivos o seu exemplo e a sua determinação!
26 Abril, 2025
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