A Vida dos Livros

“Le Musée Imaginaire” de André Malraux

“Le Musée Imaginaire” de André Malraux (1947) é um clássico, no qual o seu autor nos fala da nova relação que se estabeleceu entre arte e sociedade nos tempos atuais.

O MUSEU TRANSFORMA-SE

“A nossa relação com a arte, ao longo de mais de um século, não parou de se intelectualizar. O museu põe em questão cada uma das expressões do mundo, o que pressupõe uma interrogação sobre o que reúne”. É André Malraux quem o diz, cidadão do século XX, romancista comprometido, lutador pelas liberdades, referência do progressismo social, criador no pós-guerra nas modenas políticas culturais, ao lado do General De Gaulle. O prazer do olhar, a sucessão e a aparente contradição das escolas levam-nos à tomada de consciência “duma procura apaixonada da recriação do universo perante a Criação”. O museu é, assim, lugar onde se dá maior ênfase a uma elevada ideia de humanidade. Mas, quando o visitamos, temos consciência de que apreendemos apenas uma parte do conhecimento. Malraux lembra que um crucifixo romano, uma “Madonna” de Cimabué ou uma Athena de Fidias começaram por ser peças realizadas com fins específicos para templos, memoriais, invocações, e tornaram-se obras de arte, sem  outra função ou vocação senão isso mesmo. E os museus, mercê da nossa relação com a obra de arte, ganharam uma importância que antes não tinham. Antes dos museus ganharem essa proeminência, o conhecimento da criação artística era limitado. As viagens artísticas eram um privilégio. Muito poucos tinham conhecimento amplo dos melhores exemplos de arte. Alguns conheciam uma parte pequena dos territórios mais ricos – como a Espanha, a Itália e a Alemanha, outros nem sequer isso. Conhecemos as viagens de Stendhal ou Gautier, mas Baudelaire e Verlaine não tiveram uma visão global da criação dos artistas mais significativos. Do século XVII ao XIX apenas havia divulgação de obras de arte através de gravuras, com naturais limitações, quanto à cor, à dimensão, à profundidade e ao relevo.

TEMPO DE DIFUSÃO

Com o aperfeiçoamento das reproduções fotográficas e de impressão, um estudante passou a dispor da reprodução a cores da maior parte das obras magistrais, além das referências mais antigas, das esculturas indiana, chinesa, japonesa ou pré-colombiana, da arte bizantina ou dos frescos romanos. E o “museu imaginário” foi permitindo termos acesso à diversidade da criação e à sua evolução não só pelo conhecimento da criação artística da humanidade, mas também pela evolução da mentalidade dos artistas e pela sua crecente autonomia criativa. Assim, os verdadeiros artistas deixaram de seguir os valores dos poderosos de quem dependiam por via das encomendas e os escritores românticos opuseram-se aos clássicos, designadamente na apreciação da pintura. Nasceu a presença dominadora do pintor. Manet, Goya ou Daumier procuram pôr fim uma representação ficcionada. Surge a harmonia dissonante, os esquissos de Delacroix, Constable ou Corot abrem lugar à intervenção dos sentidos. A aventura impressionista interioriza interpretações não orientadas pela imitação… E a pintura torna-se o valor supremo para o pintor. O artista do século XIX rompe, deste modo, com quatro mil anos de arte. As formas recusam a imitação. Só estamos perante arte quando se verifica a libertação de um espaço circunscrito. É o que se passa com o cinema, em vez de fotografar uma peça de teatro, regista de uma sucessão de instantes. O meio de reprodução do cinema é a fotografia em movimento, mas o seu meio de expressão é a sucessão de planos. E deste modo encontramo-nos perante um meio privilegiado para a ficção. É o movimento que impera – e o nascimento da arte moderna corresponde ao fim do primado do antigo, da transmissão e da reprodução. Deixa de funcionar a ideia de posse da obra de arte. E a fotografia revela o mais vasto domínio artístico que o homem jamais conheceu. O estilo torna-se expressão legítima da intenção criadora. A singularidade do artista torna-se o carácter da arte. Se o Museu era a afirmação, o Museu Imaginário torna-se a interrogação.

MUDANÇA PROFUNDA

A metamorfose profunda que presenciamos mostra-nos que o passado chega até nós sem cor. As estátuas gregas perderam a cor, tornaram-se brancas. Os deuses ressuscitam sem a sua divindade. E a pintura é a poesia que se vê. Renoir e Chagall demonstram-no. Mas do século XVI ao XIX a natureza representa em pintura o domínio da verdade. Contudo, o cubismo rompe com a natureza. Deparamo-nos com a metamorfose do olhar – e o Museu Imaginário orienta a transformação dos verdadeiros museus e da relação com a arte. E a pouco e pouco, as obras-primas passam a referir-se a uma arte universal. É o tempo que se exprime. Ao entrar no museu uma obra torna-se obra de arte – e as linguagens da arte não se assemelham à palavra, mas são irmãs da música. Eis o património cultural como realidade viva.

Guilherme d’Oliveira Martins                                                                                                                                                                                                                                                                        

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