Em Busca de Ideias Contemporâneas

Jean-Marie Domenach e Pierre Emmanuel

Folhetim de Verão “Em Busca de Ideias Contemporâneas” – capítulo 10

Continuamos a transcrever o depoimento de António Alçada Baptista, que complementa o testemunho afetuoso de Edgar Morin, transcrito em A Pesca à Linha. Algumas Memórias, editorial Presença, Lisboa 2000, pp. 59-72. Este panorama ficaria incompleto sem a referência à “Association Internationale pour la Liberté de la Culture”.

«Nos meus contactos com intelectuais franceses, pude dar-me conta de se ter gerado algum interesse nesses meios em apoiar a nossa ação. Jean-Marie Domenach chegou a fazer uma circular para pedir ajuda para a revista (circular de que tivemos conhecimento através de um secretário do Ministro do Interior que a tinha recebido da PIDE no gabinete. (…) Nesses meios tinha ficado a ideia da nossa necessidade de ajuda e, em França, algumas pessoas ficaram interessadas na ação que estávamos a fazer. Um dia veio a Lisboa, numa visita de trabalho, o sociólogo francês Cuisinier que me entregou uma carta de Pierre Emmanuel, presidente da Association, onde me pedia para o contactar numa próxima visita a Paris. Daí criámos uma grande amizade que hoje posso recordar como um dos grandes privilégios que tive. Regressado a Lisboa, com o prometido apoio da Association, combinámos, entre algumas pessoas e forças políticas, constituir um grupo – Comissão Portuguesa para as Relações Culturais Europeias – que seria o órgão consultivo da ajuda que nos era dada. Se a memória me não falha, além de mim e do João Bénard da Costa, faziam parte deste grupo os seguintes: Luís Lindley Cintra (que chegou a pertencer ao Comité diretor em Paris), José Ribeiro dos Santos, Joel Serrão, José Cardoso Pires, Adérito Sedas Nunes, Miller Guerra, João Salgueiro, José Augusto-França e, mais tarde, o padre Manuel Antunes, Maria de Lourdes Belchior, João de Freitas Branco, Nuno de Bragança e José Palla e Carmo. O João Bénard secretariava, primeiro na redação de “O Tempo e o Modo”, e, mais tarde, no Centro Nacional de Cultura. O nosso orçamento anual, cuja quantia me não lembro já, dava para apoiar bolsas de estudo e viagens, participação em seminários estrangeiros, assinaturas de jornais estrangeiros, apoio a certos livros da Moraes Editores, etc. Além da ajuda material, esta ação permitiu a muitos intelectuais portugueses formas de intercâmbio com os centros culturais europeus, que os fizeram sair do gueto em que estávamos metidos e lhes deu ocasião para participar em núcleos de diálogo com a cultura europeia, nomeadamente com os intelectuais de países sem liberdade, do Leste, da Espanha e da América Latina. Esta comissão, além do apoio que pôde dar a iniciativas que não teriam outras fontes de financiamento, foi também um lugar de encontro entre pessoas de várias ideologias e mais uma presença dos católicos na ação de oposição ao antigo regime. Sem nenhum ressentimento pessoal mas com a preocupação, que julgo útil, de fazer um balanço ao que significou toda esta aventura, gostaria de dizer ainda que vários e contraditórios sentimentos se cruzam em mim, sempre que tento fazer esta reflexão. Por um lado, não posso deixar de ser sensível a certos depoimentos das gerações que nos seguiram, para quem essa aventura foi um acontecimento-referência que acordou alguns e confortou outros perante um tempo carregado de dúvidas e inquietações. Não sei se isso se passou só no plano da verbalização das ansiedades ou se terá produzido algum efeito mais profundo e mais comprometedor. De todos esses depoimentos, talvez o que mais me impressionou tenha sido o de um oficial, dos que tinham feito a Revolução de Abril, que um dia me encontrou e, sem me conhecer, veio ter comigo e me disse: “Tenho que lhe agradecer a sua revista, porque estava lá em África, no meio do mato, e só através de “O Tempo e o Modo” tomei consciência do que por aqui se estava a passar”. Mas não sei se isso chega para me redimir de alguma má consciência por ter entrado numa aventura que muito serviu para desculpabilizar alguma burguesia portuguesa incomodada, cujos problemas de consciência parece que estávamos incumbidos de resolver sem qualquer contribuição da sua parte.

Independentemente da má gestão administrativa, esta aventura falhou porque a camada da sociedade portuguesa a quem ela se dirigia recusou frontalmente a sua colaboração e não esteve disposta a correr nenhum risco nem, na prática, se sentiu minimamente solidária com o esforço que estava a ser feito. Lembro-me de algumas histórias que revelam esse estado de medo e de insegurança, mas também da passividade com que reagiram a uma ação que lhes permitia ficarem em casa de consciência tranquila. Quando a revista passou para as mãos dos “maoístas”, recebi um telefonema de uma senhora com altos cargos na Ação Católica, que me dizia, com uma voz muito séria, que eu não tinha o direito de deixar a revista, que eu era uma pessoa com grandes responsabilidades neste país. Disse-lhe: “Desculpe, mas não percebo este telefonema. “O Tempo e o Modo” durou seis anos, eu perdi com ele setecentos contos e você nem sequer era assinante. Tem que me explicar qual a razão por que é que eu, à minha custa, tenho que resolver os problemas de consciência daqueles que andam a tratar da sua vida”. O medo era tal que as pessoas nem o disfarçavam. Quando assinei um papel contra a guerra colonial, recebi um telegrama a louvar a minha coragem assinado por um “anónimo do Porto” e, uma vez, encontrei um na rua que se me dirigiu e me disse: “Dou-lhe os meus parabéns pela sua revista. Sabe, eu não sou assinante mas compro sempre nas livrarias, porque tenho medo que vá lá a Pide buscar o ficheiro dos assinantes”.

A situação económica da Moraes ia-se deteriorando. Os livros vendiam-se muito pouco, as dívidas acumulavam-se. As assinaturas da revista andavam à volta de setecentas e a tiragem nunca ultrapassou os mil e quinhentos exemplares. A revista durou seis anos, os cortes da censura eram numerosos e, como já disse, os textos tinham que ser submetidos a “exame prévio” já impressos em provas. Pode imaginar-se o que a revista custava. Julgo que “O Tempo e o Modo” deu um prejuízo de setecentos contos, dinheiro de 1969, mais ou menos doze mil na data em que escrevo (1989). (…) Continuo a perguntar-me – e confesso que não encontrei resposta – sobre a razão desta falta de coragem cívica que me parece irrefutável. Houve, ao longo de todos estes anos, muitos exemplos de coragem e de espírito de sacrifício pessoal , mas não conseguimos descobrir, com muito raras exceções, não sei onde a escondemos, a coragem cívica. Não quero cair na ingenuidade de explicar tudo isso pela cobardia pessoal , mas deve haver qualquer coisa de muito profundo para justificar esta situação de letargia coletiva. Talvez o estarmos perante uma sociedade totalmente desencantada e descrente, onde o povo encontrava na emigração a sua única esperança de futuro, e as elites, na manutenção cega dos seus privilégios, os seus únicos e curtos horizontes. O filósofo espanhol Julian Marias, discípulo de Ortega y Gasset, conta nas suas memórias – Uma Vida Presente – que, por volta de 1943 ou 1944, veio a Lisboa visitar o Mestre que aqui se encontrava exilado. A certa altura perguntou-lhe o que pensava de Salazar. Ortega respondeu: “Bom para governar oito milhões de moribundos…” É possível, numa visão otimista, que o choque da liberdade os tenha restituído à vida.

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