A Vida dos Livros

Irene Vallejo reflecte sobre as origens e o destino do livro

Irene Vallejo, recentemente premiada com o Prémio Nacional de Ensaio de Espanha, graças ao livro “O Infinito num Junco” (Bertrand, 2020), oferece-nos uma reflexão fundamental sobre as origens e o destino do livro.

OS LIVROS TÊM O SEU PRÓPRIO DESTINO

Falando de livros e de autores, não podemos esquecer o que Eduardo Lourenço nos diz sobre o nascimento da modernidade portuguesa. “Almeida Garrett e Herculano ‘refundaram’ Portugal porque, pela primeira vez, e de uma maneira mais radical do que acontecera nas raras mas fortes crises que pontuaram a nossa história de nação independente, o país esteve em sérios riscos de perecer. E de uma maneira que não afetaria apenas a sua expressão política, mas o seu todo como organismo histórico e cultural”. E que aconteceu? Portugal ficou em discussão na balança da Europa, depois das guerras napoleónicas. Os poetas românticos foram para o exílio, em nome da liberdade – e “Portugal e os Portugueses, pela primeira vez divididos ideologicamente – ao menos uma pequena minoria – começam a preocupar-se e a ocupar-se do destino de Portugal. Como se fossem já cidadãos e não meros súbditos. (…) Com o voto da Constituição de 1822 nasce o liberalismo em Portugal e pede-se ao rei que regresse para jurar a Constituição. A semente estava lançada…” Tratava-se de separar o Portugal velho do Portugal Novo. E os dois românticos, pensando o País em termos profanos, integram-no na História. Assim, insiste Eduardo Lourenço, “A História de Portugal de Alexandre Herculano não é uma entre outras, é a primeira digna desse nome escrita de dentro e segundo as mais rigorosas exigências da época. É já também, intrinsecamente, Portugal como história. O inacabado monumento ficou perfeito no seu inacabamento. É também uma leitura do nosso passado à luz do presente, um Portugal que, de armas na mão, se conquistou como liberdade. E é o passado dessa liberdade – quando na sua perspetiva mereceu esse nome – que ele exuma e exalta. Um passado julgado mesmo com severidade (…) antecipando a leitura dramática da geração seguinte. Miraculosamente, contudo, tenta preservar os dois Portugais que sob os seus olhos se digladiaram, conciliando liberalismo com cristianismo” (Portugal como Destino – Dramaturgia cultural portuguesa, 1998).

Não por acaso falamos de dois autores que influenciaram decisivamente o seu tempo pelo que escreveram. E hoje as suas obras são marcantes. Fizeram uma ligação entre uma cultura antiga e ancestral e o tempo presente. Mas a força da sua influência deveu-se à construção de uma cidadania livre – capaz de ligar as raízes antigas e a modernidade. Por isso, o ensaísta de Mitologia da Saudade salienta que a importância de Garrett e Herculano não se deverá a qualquer acomodação ou adaptação, mas à afirmação da sua visão da história e a uma exigência do seu individualismo ético. E nesse ponto, como o analista afirma, os dois mestres antecipam o que Antero de Quental dirá em As Causas da Decadência dos Povos Peninsulares. De facto, a geração do último quartel do século XIX vai completar a sementeira de ideias lançada pelos primeiros românticos, que sempre recusaram ser mestres-escola, antes preferindo ser desafiadores de ideias novas. Por isso, José-Augusto França analisou o Romantismo português como um fenómeno de conjunto, com múltiplas implicações, nunca confundível com uma ideologia circunstancial… E entende-se Herculano, tendo vivido o suficiente para poder ver a influência na geração que se lhe seguiu, dialogando com ela, sem cedências, com exata compreensão da força perene do individualismo ético, que os jovens de 1870 utilizariam para a afirmação de uma via democrática e social e de uma síntese entre a liberdade, as raízes históricas e a reorganização da sociedade.

A PAIXÃO DOS LIVROS…

Eduardo Lourenço como, antes dele António Sérgio, ressalvadas diferenças e confluências, insere-se nessa mesma genealogia. E não por acaso coloca Garrett e Herculano na fundação da sua estirpe intelectual. E podemos recordar nesta ligação o que o gramático latino relativamente obscuro, Terenciano, afirmou: “Habent sua fata libelli”, significando que os livros têm o seu próprio destino. Irene Vallejo, recentemente premiada com o Prémio Nacional de Ensaio de Espanha, graças ao livro O Infinito num Junco (Bertrand, 2020), interrogou a invenção dos livros no mundo antigo – lembrando que tudo começou na oralidade, desde a transmissão pelos Aedos das narrativas heroicas, como a Ilíada e a Odisseia… Não por acaso, faço a ligação entre as reflexões do nosso maior ensaísta e esta obra tão rica de pensamento. Longe de se tornarem esquecidos, o livro e a leitura assumem hoje uma importância indiscutível, pelo número de novos leitores e pela perceção de que, com vários suportes tecnológicos, a transmissão de narrativas tem a ver com a memória e a sua exigência como procura de sentido e como modo de superar o vazio de valores, de que fala Hermann Broch, num mundo de “sonâmbulos”. A pandemia, a distância, a prevenção da doença obrigam à compreensão de que temos de encontrar respostas para a indiferença, a separação e o medo.

A Biblioteca de Alexandria procurou reunir o conhecimento num mesmo lugar, acessível a quem pretendesse saber. A ideia original do Museu também é semelhante, pretendendo em homenagem às musas pôr em contacto o conhecimento e a experiência. Mas enquanto em Alexandria no século III a.C. tentava reunir-se a totalidade dos livros, o Imperado Qin Shi Huang Di ordenava que se queimassem todos os livros nos seus domínios. Como salientou Umberto Eco, o livro é uma tecnologia fundamental, mas não há um modelo de livro – já tivemos o rolo, o papiro, as placas de argila, os códices medievais até ao digital contemporâneo. Trata-se, no fundo, de preservar a palavra, E a evolução significa a procura incessante da melhor maneira de preservar as palavras. Estamos a falar de arquivos da memória e das palavras. E nesta extraordinária transmissão, temos além dos Aedos, as mulheres, as mães que desde a conceção da criança têm um papel decisivo na sua formação, através da oralidade.

A MEMÓRIA DE ASPÁSIA DE MILETO…

E não diz Irene Vallejo que Aspásia de Mileto foi quem escreveu muito provavelmente o mais célebre dos discursos de seu marido Péricles? E não podemos esquecer que o primeiro país que erradicou o analfabetismo foi a Noruega, por ter proibido o casamento de mulheres analfabetas, para que se não perdesse a leitura da Bíblia, necessária ao luteranismo, e a oralidade da comunicação familiar. Mas não estamos apenas no campo do sublime, uma vez que os livreiros foram ao longo dos tempos tantas vezes vítimas da sua própria coragem e do risco de vida, ao publicarem obras polémicas, ao abrigo da liberdade de pensamento e de expressão. Quantos não perderam a vida apenas para concretizarem a liberdade, a autonomia e a dignidade humana. Desde os versos de Homero à Biblioteca de Sarajevo, encontramos o essencial da história humana. A ficção e o ensaio andam paredes meias. Se Montaigne tem uma capacidade única de se dirigir ao leitor, de tu a tu, As Mil e Uma Noites são uma cadeia interminável de relatos que permitem entender a complexidade da vida e do género humano. Daí que O Infinito num Junco seja uma verdadeira arqueologia do saber e das ideias, cuja matéria-prima é feita de memória humana, em toda a sua complexidade. São as Humanidades que encontramos na sua vitalidade plena, quando vislumbramos a eternidade num fresco da Vila dos Papiros em Herculano.

Guilherme d’Oliveira Martins

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