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IDEAS OF / FOR EUROPE

Presidente do CNC no Congresso Internacional “Ideas of/for Europe”. Texto da intervenção aqui.

Presidente do CNC no Congresso Internacional “Ideas of/for Europe”


Entre 6 e 9 de Maio, decorreu na Universidade de Tecnologia de Chemnitz, Alemanha, o Congresso Internacional “Ideas of/for Europe”.

Annabela Rita, António Nóvoa, Guilherme d’Oliveira Martins, José Eduardo Franco, Onésimo T. Almeida e Renato Gonçalves foram alguns dos oradores portugueses intervenientes nesta iniciativa, que contarou ainda com a participação de vários convidados internacionais.
Durante o decorrer do Congresso, o Presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso, foi distinguido com o doutoramento Honoris Causa pela Universidade de Tecnologia de Chemnitz.
Publicamos aqui a intervenção do Presidente do Centro Nacional de Cultura, Dr. Guilherme d’Oliveira Martins, na sessão plenária subordinada ao tema “Thinking Europe/Feeling Europe”:


QUE CULTURA PARA A EUROPA? (*)


Por Guilherme d’Oliveira Martins



1. A Europa baseia-se num paradoxo – a diversidade que é a sua riqueza, conduziu ao longo da história ao conflito e à tentação hegemónica. No entanto, a diversidade e a tentação hegemónica foram responsáveis por conflitos insanáveis, agravados pela humilhação e pelo ressentimento. De facto, as guerras civis europeias dos últimos séculos conduziram o velho continente à situação trágica do século XX, em que tudo se precipitou a partir da tentação proteccionista e da hiper-valorização dos nacionalismos, apesar da improbabilidade aparente de um desastre, porque havia relações muito estritas entre as principais casas reinantes, porque a interdependência económica começava a ser realidade, e porque alguns acreditavam em que o internacionalismo poderia evitar que os trabalhadores se matassem entre si. Depressa se percebeu que tudo isso era frágil e que a resistência das democracias contra os totalitarismos exigiu a congregação de vontades e uma convergência de forças heterogéneas, mas todas orientadas na defesa das liberdades, contra as tentações da criação de sociedades perfeitas. Hannah Arendt falou, por isso, a um tempo na “banalidade do mal” e no “fenómeno totalitário”. E lembrava que Santo Agostinho disse ter o homem sido criado “para que houvesse um começo”. E esse começo exige uma consciência da liberdade através da lei e do direito, contra o terror e a arbitrariedade, segundo os quais as pessoas deixam de valer por si e são levadas a ser vistas e a ver-se como um só, sob a sombra avassaladora de um processo total. E o medo torna-se princípio de acção, como referiu Montesquieu. Para Arendt o totalitarismo tinha a ver não apenas com o partido único, mas com organizações que submetiam os indivíduos a objectivos comuns de purificação e de perfeição, com sacrifício completo da autonomia e da liberdade. Assim, a consciência da liberdade através da lei e do direito, contra o terror e a arbitrariedade obriga a pensar o paradoxo europeu à luz de uma ideia de superação, que o pós-guerra definiu como uma ideia de reconstrução sem humilhação e sem ressentimento, mas através de uma ideia de cooperação supranacional, em torno das ideias de paz e de desenvolvimento.


2. À luz da exigência da superação do paradoxo diversidade / hegemonia, torna-se necessário garantir que haja uma legitimidade comum capaz de evitar o risco ancestral de hegemonia. Daí que hoje, sobretudo depois das guerras mundiais do século XX e do fim da guerra-fria, a Europa esteja perante o desafio de construir uma realidade original que permita conciliar a segurança e a paz, o desenvolvimento humano sustentável e a diversidade cultural. Mas as resistências acumulam-se, quer do lado dos burocratas que crêem numa Europa uniformizadora e infalível, que do lado dos cépticos, incapazes de acreditar num projecto de cidadãos e de cultura. Se tirarmos lições da História, perceberemos que a União Europeia não é uma realidade irreversível. Como a liberdade ou a democracia é preciso que a construamos e a protejamos laboriosamente, centrada no Direito, na Legitimidade e na Dignidade. Precisamos, por isso, de audácia, de modo que haja uma autêntica partilha de responsabilidades cívicas e que a Europa não seja uma construção abstracta não sentida pelas pessoas. Por isso, se a Europa se limitar a ser uma “comodidade”, não poderá suscitar paixões, do mesmo modo que não poderá constituir uma legitimidade supranacional, como garantia adicional de autonomia e de emancipação pessoal e cívica.


3. No entanto, o projecto europeu não pode ater-se apenas ao velho continente, tem de envolver uma mundivivência que favoreça o desenvolvimento e a paz, a cooperação e a justiça. Em lugar do eurocentrismo, importa conceber uma ordem internacional multi-polar, que permita uma governabilidade humana e justa da globalização. O eurocentrismo é muitas vezes um pecado que se aponta à União Europeia, demasiado acomodada às suas conquistas materiais e aos seus egoísmos. Temos de estar de sobreaviso contra essa tentação, que é real, e que como reacção defensiva levará ao enfraquecimento de um projecto europeu, qualquer que seja. Mas, não há razões para complexos, o que há é um caminho de fidelidade relativamente ao melhor da nossa cultura e da nossa atitude, como europeus. E esse melhor da nossa cultura obriga a olhar a globalização a uma luz totalmente diferente da que tem sido assumida. É preciso haver justiça distributiva no mundo, é preciso combater a pobreza, a ignorância, a fome e a miséria onde quer que se situem. Não podemos assistir de braços cruzados ao agravamento das desigualdades e das injustiças. Se há movimentos migratórios, é preciso que nos preocupemos com a inclusão social nos países de origem e nos países de destino. Não basta ver o fenómeno como um problema de segurança e de fronteiras – é um problema de dignidade humana, de cidadania e de desenvolvimento.


4.  A União Europeia é uma realidade inédita, diferente de todas as outras que conhecemos, reunindo Estados e Povos livres e soberanos, através de uma partilha de soberanias e do respeito da subsidiariedade. Falar de partilha de soberanias, é falar de uma legitimidade soberana originária dos Estados, mas também da formação de novos espaços de supranacionalidade, que partam da compreensão do que Daniel Bell disse ser a tendência actual: o Estado-nação é demasiado pequeno e demasiado grande para solucionar os problemas contemporâneos. O Estado-nação não perdeu espaço nem actualidade. É um factor fundamental de mediação e de cidadania activa, mas não o princípio e o fim dos espaços públicos. Daí a importância do princípio da subsidiariedade, segundo o qual as decisões devem ser tomadas o mais próximo possível das pessoas, mas ao nível adequado, que permita decisões eficientes e oportunas, legitimas e justas. E se a subsidiariedade é fundamental, é preciso que se criem instrumentos que permitam os cidadãos sentir-se com voz activa nas questões que verdadeiramente os afectam.


5. O projecto europeu é um projecto de sobrevivência, que visa encontrar um conjunto de interesses e valores comuns que permitam construir não uma harmonização mas uma complementaridade que favoreça uma cultura de paz e o desenvolvimento humano. Para Rougemont, a alternativa que se põe à Europa é entre a unidade ou o desaparecimento. “Dividida em nações rivais, não podendo nenhuma delas assegurar a sua defesa, a Europa será colonizada”. Só a existência de elos federadores muito fortes permitem impedir a guerra e lançar as bases da paz e do desenvolvimento. “Unir a Europa nas suas diferenças, esse é o grande objectivo comum que se oferece a esta geração”, para construirmos uma realidade europeia humanista, capaz de contrariar uma mentalidade ainda hoje demasiado dominada pelos medos, pelas resistências, pelos receios e pelos egoísmos nacionais. E Rougemont insistia: “é porque a Europa é a memória do Mundo que não deixará de inventar. Continuará a ser o ponto de virulência extremo da criação espiritual, este canto do mundo onde o homem soube tirar de si mesmo as utopias mais transformadoras e mais ricas de futuro, em benefício de todos os outros homens do planeta”. Como Karl Jaspers afirmou: a Europa não tem escolha senão entre a balcanização e a helvetização, ou seja, entre a fragmentação e a incerteza, de um lado; a integração federal das nações e a partilha de soberanias, de outro. Mas, para durar, a Europa não deve contar apenas com os governos. “A união, a paz, que a maior parte dentre elas desejam, não pode ser questão sua, por razões absurdas, mas técnicas”. É preciso empenhamento de todos. A palavra deve caber aos povos. E falamos de um sistema de “liberdades organizadas”, solução de equilíbrio entre o individualismo e a solidariedade. A Europa tem de ser diálogo e debate perpétuos, daí que deva basear-se a união na diversidade. “A criação, a transmissão e a elaboração da cultura nunca foram na Europa apanágio de uma doutrina única, duma nação ou de uma casta escolhida. Resultam, pelo contrário, de um diálogo permanente (muitas vezes dramático, outras trágico) entre um grande número de realidades e de tendências antagónicas que todas contribuíram para fazer a Europa e para modelar a ideia europeia de homem”. Com sentido profético e visionário, Rougemont disse-nos, por isso, que “a conquista suprema da Europa chama-se dignidade humana e a sua verdadeira força está na liberdade”…


6. A actual crise financeira, económica, social e cultural, com raízes na especulação e numa lógica destrutiva e ilusória obrigará a fazer repensar o projecto europeu, num contexto global. A chamada “estratégia de Lisboa” tem de regressar à ordem do dia – uma vez que teremos de ligar a economia real, o emprego, a inovação, a educação, a formação e a ciência, a produtividade, a competitividade e a justiça. Mas, mais do que isso, é essencial que haja uma governação económica da União, é indispensável que a política monetária seja articulada com a política económica, sob pena de o Euro ficar fragilizado por incapacidade de usar em ligação instrumentos monetários e de finanças públicas, para que os objectivos de coesão social e económica, de emprego e de investimento não sejam vãos. E o certo é que os sinais que temos tido são manifestamente insuficientes.


7. A União Europeia exige o respeito das duas legitimidades em que assenta, dos Estados e dos cidadãos. Temos de ser mais ambiciosos quanto aos mecanismos que envolvam os cidadãos na Europa política e social. Já falámos da subsidiariedade. Daí que os Parlamentos nacionais tenham de ter um papel acrescido na vida europeia. O Parlamento Europeu tem de se ligar mais às instituições representativas nacionais. Se a democracia europeia se baseou no livre consentimento dos cidadãos, urge consagrar instituições representativas dos cidadãos a funcionar para impedir que poderes executivos não legitimados pelo voto ocupem o lugar dos parlamentos, conquistados arduamente ao longo dos últimos séculos.


8. Mas como definir a identidade europeia? Como caracterizar a consciência que temos de nós próprios? Basta lermos as obras referenciais da cultura europeia para entendermos que estamos perante uma riquíssima encruzilhada de múltiplas influências – e se percebermos bem as principais referências da nossa cultura comum possuem um cariz universalista. A Bíblia, a Odisseia, a herança de Sócrates e a obra de Platão e de Aristóteles, as Confissões de Santo Agostinho, A Divina Comédia de Dante, O Elogio da Loucura de Erasmo, Guerra e Paz de Tolstoi, A Montanha Mágica de Thomas Mann não são obras exclusivamente europeias, abrem caminhos que não se confinam a fronteiras fechadas ou a limites redutores. A cultura europeia, no seu sentido cosmopolita, paradoxal e heterodoxo, aponta, como vimos, para a recusa de um eurocentrismo fechado. O reconhecimento da importância da pessoa humana (do grego “prosopon”, que significa a máscara do teatro) põe a tónica na dignidade universal da pessoa humana e nas identidades colectivas como “pessoas de pessoas”. Daí a importância do reconhecimento das diferenças e da valorização do diálogo entre culturas e civilizações, não como a oposição das diferenças, mas como o enriquecimento mútuo. Se, no seio da Europa, esse diálogo se tornou possível, tem igualmente de se concretizar fora. Eduardo Lourenço fala das “duas razões da Europa”, contrapondo a racionalidade cartesiana e a sensibilidade barroca de Baltazar Gracián. A lição tem de ser ouvida. A Europa tornou-se menos influente? É preciso perceber-se como tal ocorreu, se a partir da nossa decadência, se a partir da reconsideração do nosso universalismo. As duas explicações merecem crédito.


9. Falar do desafio europeu, é, assim, falar da cultura e da ciência. Como diz Jean-Marie Domenach, “pela primeira vez desde o século VIII, surge a possibilidade duma Europa que se unifica, não sob uma hegemonia, mas contra as hegemonias”. A alternativa entre império e nação deixa de fazer sentido. Referir a cultura e a ciência é lembrar a mobilidade e o diálogo, a livre circulação de ideias, a cooperação académica, os movimentos de estudantes e professores, de cientistas e intelectuais. Não por acaso, Hermann Broch preocupa-se com a “desintegração do mundo ou a dissolução dos valores”, fruto da secularização extrema, e reclama um “padrão ético” como forma de contrariar que “todas as áreas de valor se transformem, de um momento para o outro, em áreas de não-valor, todo o bem em mal”. No fundo, o “padrão absoluto e absolutamente transcendente” para ser “absoluto ético” tem de transferir valor à vida humana nos seus diversos aspectos. Estamos diante de um “imperativo ético” que Broch faz evoluir de uma dimensão espiritual para uma perspectiva vital e histórica. A cultura europeia não esquece esse imperativo centrado na pessoa humana, na vida comunitária vista como “pessoa de pessoas” e no que Castoriadis designa como auto-instituição da sociedade, para que “todos os cidadãos tenham uma igual possibilidade efectiva de participar na legislação, no governo, na jurisdição e, por fim, na instituição da sociedade”.


10. A Europa, em suma, ou se abre ao universalismo ou compromete a sua própria vocação histórica. “Os países europeus são todos herdeiros duma civilização que se estabeleceu no continente há mais de vinte e cinco séculos, na Grécia, depois em Roma (diz-nos Tzvetan Todorov). Todos foram marcados pela religião cristã, que se afirmou em continuidade e em oposição com o judaísmo e o Islão. Aproveitaram um desenvolvimento tecnológico comum, lançado na Renascença, e alguns deles lançaram-se, desde o século XVI, nas conquistas coloniais nos quatro cantos do mundo – antes de ver, alguns séculos mais tarde, os antigos colonizados vir viver entre eles nas antigas metrópoles”. Há, assim, uma velha Europa donde partimos, feita da guerra entre os diferentes países europeus, uns com os outros. Daí que os valores comuns devam ser pensados em conjunto, com consciência da memória vivida e como autêntica encruzilhada de diferenças. Racionalidade, justiça, democracia, liberdade individual, laicidade, tolerância tem de ser levadas à prática a sério. Saibamos, pois, opor a racionalidade ao obscurantismo, à superstição, ao pensamento mágico, à manipulação. Tornemo-nos razoáveis. Não deixemos a ciência e a técnica entregues a si mesmas, como se não tivessem limites. Há que cultivar um equilíbrio em que racionalidade não esqueça a vontade, os desejos e os ideais. A justiça opõe-se ao egoísmo e à procura de privilégios e vantagens, ligados ao poder e à força. A democracia é não um Estado “natural”, mas um Estado “contratual”. E esse carácter obriga a pôr a tónica na liberdade individual, envolvendo a crença, a opinião, o modo de organizar a vida privada e a recusa do uso ilegítimo da força. Quanto à laicidade, não pode haver confusão entre ideologia e Estado, banindo-se qualquer tentativa de criar um paraíso na terra ou de aceitação da degradação do presente em nome de um amanhã radioso. Quanto à tolerância temos de entender que este conceito parte da distinção entre as várias tolerâncias e o que nada tem a ver com estas. Como afirmou Habermas “o reconhecimento das diferenças; o reconhecimento mútuo do outro na sua alteridade, pode também ser uma marca duma identidade comum”. Por isso, a Europa, mais do que uma comodidade, deve ser uma ideia. E a imperfeição de um destino comum é o nosso horizonte.


(*) Intervenção proferida em língua inglesa (“A Culture for Europe?”) na 3ª sessão plenária subordinada ao tema “Thinking Europe/Feeling Europe” do Congresso Internacional “Ideas of / for Europe”, organizado pela Universidade de Tecnologia de Chemnitz, com o patrocínio do Presidente da Comissão Europeia, de 6 a 8 de Maio de 2009. Technische Universität Chemnitz, Straße der Nationen 62, Chemnitz (Alemanha), 7 de Maio de 2009.

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