Abecedário da Cultura da Língua Portuguesa

I. Índia (O Plano da)

Se há verdadeiros fantasmas na história portuguesa, eles estão representados por Nuno Gonçalves nos Painéis de S. Vicente, verdadeira chave do que podemos designar de Planos das Índias. No capítulo sétimo da «Crónica dos Feitos da Guiné», Gomes Eanes de Zurara apresenta cinco motivos para as navegações atlânticas. Antes de mais, lembra que o Infante D. Henrique não só manteve uma frota para defesa de Ceuta, mas também realizou o corso nas costas do Mediterrâneo. E quais as razões para o interesse da costa africana? O desejo de conhecer a terra que estava para além das Canárias e do Cabo Bojador; a vontade de encontrar cristãos e portos seguros para estabelecer relações comerciais; a possibilidade de trazer para estes reinos mercadorias que haveriam bom mercado, avaliando com rigor o poderio islâmico naquelas paragens africanas; por outro lado, o Infante, nunca tendo encontrado na Cristandade aliado que o acompanhasse na guerra contra o poder mouro, desejava saber se em África haveria algum Príncipe cristão que se dispusesse a ajudá-lo em tal empresa; finalmente, haveria que dilatar da fé cristã em novos territórios, ganhando para ela «todas as almas que se quisessem salvar». Zurara escrevia em 1452-53, em vida de D. Henrique, com acrescentos após a morte deste. Deteta-se a presença do Presbítero João (Preste João), rei mítico, primeiro localizado na Ásia, como refere o «Livro de Marco Polo», e depois em África, na Etiópia, onde se sabia haver a tradição cristã copta muito marcada. Só no reinado de D. João II se pode falar de Plano da Índia. E é neste sentido que o rei envia a missão de Afonso de Paiva e de Pêro da Covilhã ao Cairo e ao Mar Arábico. Depois de sinais contraditórios, desde a alusão aos cristãos nestorianos na Ásia até à comunidade de S. Tomé no Kerala, no sul do subcontinente indiano, tudo foi alvo de cuidadoso escrutínio, chegando-se à informação sobre a Etiópia. Mas quando há Plano da Índia? Até 1460 é muito cedo, pelas informações trazidas pelo Infante D. Pedro na viagem europeia, há, todavia, a compreensão de que o comércio mediterrânico e o domínio geoestratégico da Terra Santa são cruciais. E Zurara dá-se conta da necessidade de um plano económico e político que prolongue o espírito de cruzada. A queda de Constantinopla, cabeça do Império Romano do Oriente (1453), dá importância acrescida à demanda do Mar Arábico pela costa de África… O apelo do Papa Calisto III (1455) para uma cruzada contra os turcos, depois da queda de Bizâncio, não teve sucesso, o que reforçou a opção portuguesa de concentrar meios na rota africana. No muito curto reinado de D. Duarte (1433-1438), ocorre a passagem do Cabo Bojador (1434) e o desastre de Tânger (1437), tendo em 1441 tido sucesso a primeira operação comercial com aquisição de escravos. Em 1444 é atingida a Costa da Guiné. Contudo, só um terço dos navios que navegavam na área pertenciam á iniciativa do Infante. Em 1455 a Bula do Papa Nicolau V concedia ao Rei de Portugal a propriedade exclusiva das terras e mares conquistados ou a conquistar… Depois da morte do Infante (1460), chegados os portugueses à Serra Leoa, dá-se o arrendamento pela coroa ao mercador de Lisboa Fernão Gomes da exploração da costa africana – 100 léguas em cada ano. É o tempo da Costa do Ouro e da Mina, num momento em que a intervenção do Estado abranda, até pelo envolvimento de D. Afonso V na guerra da sucessão de Espanha (1475-76), sendo retomada a exploração direta só com o Príncipe Perfeito. Entretanto, o acesso ao Golfo das Guiné permite o comércio da malagueta, do marfim, do ouro e dos escravos – que irão permitir a sustentabilidade económica das navegações. É o confronto entre caravanas e caravelas. O reinado de D. João II (1481-1495) marca uma viragem significativa na estratégia da expansão marítima – com as políticas do segredo e do «mar fechado». Houve avanços comerciais mercê da aprendizagem do regime de ventos, do cálculo da latitude pela inclinação solar e do controlo costeiro do Sul do Atlântico. «Tempos de coruja, tempos de falcão» é o lema prático do Príncipe Perfeito. A centralização política, a limitação dos poderes da alta nobreza (com as mortes do Duque de Bragança, D. Fernando, e do Duque de Viseu, D. Diogo), a aliança com Castela, o casamento do herdeiro com a filha dos Reis Católicos, a ideia de uma economia dominante na Península Ibérica que pudesse ser base sólida de um Império universal – eis as bases da política de D. João II. Trocavam-se os bens obtidos na costa de África pelo trigo de Marrocos e das ilhas e pelas mercadorias da Europa, onde se recebiam têxteis, tapetes, cavalos e latão. Em 1482 é fundada a importante feitoria de S. Jorge da Mina, entreposto para o financiamento das navegações… Depois das expedições de Diogo Cão até ao Zaire e da chegada de Bartolomeu Dias ao Cabo da Boa Esperança, tendo sido trazido um emissário do Rei do Congo (1487), decidiu D. João II destacar os dois enviados para alcançarem a Etiópia e a Índia. Afonso de Paiva morreu, mas Pêro da Covilhã viajou pelo subcontinente indiano, pela Pérsia e pela África Oriental, fixando-se na Etiópia, onde mais tarde partilhou informações…. Há diversos mistérios por desvendar relativamente à interrupção das navegações depois de 1488. A lista de razões é conhecida: teriam sido resistências cortesãs visando beneficiar o comércio do Norte de África? Seria um tempo de espera para melhor preparação? Seria uma antecipação ou prevenção da eventual chegada de Colombo às Caraíbas? Seria a previsão de um conflito gerado pela reivindicação de conquistas perante o Papa aragonês Alexandre VI? O certo é que o casamento do Príncipe D. Afonso com D. Isabel filha dos reis católicos gorar-se-ia com a sua trágica morte (1491). E o Tratado de Tordesilhas (1494) torna-se necessário já não para regularizar as influências no Atlântico Norte, mas para definir a divisão do Mundo. O avanço do meridiano para ocidente de Cabo Verde até 370 léguas, envolve novos enigmas: seria o Brasil já conhecido? Teria Duarte Pacheco Pereira feito o reconhecimento do território? A segunda viagem à Índia capitaneada por Pedro Álvares Cabral aponta nesse sentido. Em 1495 o Rei morre no Alvor e em 1497 retomam-se as navegações. Que buscam os navegadores com Vasco da Gama? Na fórmula repetida: cristãos e especiarias. E João de Barros relata o essencial – «e porque D. Manuel com estes reinos e senhorios, também herdara o prosseguimento de tão alta empresa como seus antecessores tinham tomado – que era o descobrimento do Oriente por este mar Oceano – quis logo no primeiro ano do seu reinado acrescentar à Coroa deste reino novos títulos. Sobre o qual caso (…) estando em Montemor-o-Novo teve alguns conselhos gerais em que houve muitos e diferentes votos e os mais foram que a Índia não se devia descobrir». Mas o Rei decidiu avançar!

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