A Vida dos Livros

Honras de Panteão Nacional a Eça de Queiroz

A decisão aprovada por unanimidade na Assembleia da República visando conceder honras de Panteão Nacional a José Maria Eça de Queiroz constitui um ato de elementar reconhecimento em relação a quem é referência indiscutível das culturas de língua portuguesa. No lugar cívico de homenagem a figuras referenciais da história portuguesa, está em causa a valorização do Panteão, de modo a melhor dignificar uma identidade nacional antiga, aberta, complexa e fecunda.

PANTEÃO NACIONAL
Em Portugal, o estatuto de Panteão Nacional está hoje atribuído ao antigo templo de Santa Engrácia em Lisboa, ao Mosteiro Santa Cruz em Coimbra e ao Mosteiro de Santa Maria da Vitória (Batalha), onde se encontram os túmulos dos dois primeiros reis de Portugal e dos fundadores da Dinastia de Avis. No Panteão estão sepultadas figuras nacionais marcantes e são ainda recordados, através de “cenotáfios”, os nomes de: Nuno Álvares Pereira, Infante D. Henrique, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Afonso de Albuquerque e Luís de Camões. O mosteiro dos Jerónimos funcionou provisoriamente como Panteão, mas não tem hoje esse estatuto formal, ainda que tenha os túmulos de Vasco de Gama e de Luís de Camões, na nave do templo, de Alexandre Herculano, na antiga Sala do Capítulo e de Fernando Pessoa. Em S. Vicente de Fora, está o Panteão da Dinastia de Bragança, onde se encontram sepultados membros da família real que reinou após a Restauração de 1640. No entanto, trata-se aqui de um Panteão familiar. Desde a antiga Grécia e depois em Roma, a palavra Panthéon designava o templo onde se honravam os deuses com culto reconhecido. A palavra é grega e significa literalmente “todos os deuses”. Em Roma, o Panteão que chegou aos nossos dias é a homenagem ao cônsul Marco Agripa (63-12 a.C.), que o mandou construir em 27 a.C. No ano 80, foi praticamente destruído por um incêndio. Quatro décadas depois, o imperador Adriano (76-138) ordenou a sua reconstrução. Foi o cristianismo que, em virtude da doação de um rei bizantino ao Papa Bonifácio IV no século VII, salvou o monumento da pilhagem e da destruição, adotando o orago de Santa Maria e Todos os Santos. No Panteão de França, em Paris, a construção como templo religioso foi iniciada em 1764, por encomenda de Luís XV, em ação de graças por ter recuperado de uma grave enfermidade. A obra apenas foi concluída em 1790, depois da Revolução tendo sido então transformado num edifício secularizado, com a função de homenagear os vultos que se notabilizassem na pátria. Também na Abadia de Westminster, em Londres, estão sepultadas grandes figuras britânicas como William Shakespeare, Isaac Newton e Charles Darwin. Foi assim a partir duma tradição ora religiosa ora secular que foram criados os Panteões Nacionais.

VENCIDOS, MAS VENCEDORES
Se há figura histórica em Portugal cuja presença no Panteão Nacional se justifica plenamente, é o autor de Os Maias e de A Ilustre Casa de Ramires, como romancista que retratou a sociedade portuguesa do final do século XIX em termos que nos permitem compreender melhor de onde vimos e quem somos. Não significa isto que a sociedade contemporânea não tenha mudado. Mudou muito, mas prevalecem elementos duradouros que nos permitem pôr em confronto o que resiste e o que se transforma. Ainda se usa a expressão vencidismo para caracterizar a geração de Eça de Queiroz – no entanto não tem sentido negativo essa expressão, uma vez que a palavra “vencidos” nasceu como uma ironia (“battus de la vie”) que o tempo não confirmou como fatalidade profética, mas sim como orientação crítica e como obrigação de uma modernização cosmopolita e europeia. Não transigir com a mediocridade e o atraso foi a marca dessa geração de 1870. E se virmos bem, Eça de Queiroz, sendo um diplomata a viver fora de Portugal, foi sempre na perspetiva de português que retratou a nossa sociedade. A marca própria está na visão citadina que sempre imprimiu à sua obra, enquanto alguém como Camilo Castelo Branco (romancista de primeira água, a merecer também as honras de Panteão) foi mais próximo do país profundo rural, apesar da sua extraordinária cultura erudita. Afinal, é uma geração que não se deu por vencida, tendo ousado diversas tentativas políticas, que pecaram tantas vezes por uma razão fora do tempo ou pela fragilidade dos meios disponíveis. Contudo, até aos nossos dias essa geração foi transversal na sua inequívoca influência, marcando (pode dizer-se) as várias famílias políticas e correntes de opinião na cultura e nas artes, dos conservadores aos modernistas. Como dirá Oliveira Martins a Ramalho Ortigão, a propósito de “As Farpas”: “V. e o Queiroz reúnem os dois modos eminentemente modernos de rir. A um o espírito francês, ao outro o humorismo alemão. Enquanto um põe fria e secamente o problema e tira dele todas as conclusões, lógicas até ao absurdo, o outro fantasia com uma ironia dolorosa e profunda”… Esse sentido crítico, esse pendor picaresco fazem parte da necessidade inconformista e da exigência de superação da indiferença. E em Os Filhos de D. João I, diz Oliveira Martins: “Ocorre, portanto, indagar qual vale mais, se vencer, ou ser vencido? Convém perguntar se num mundo incompleto e imperfeito, como tudo o que é real, a bondade, a virtude, a nobreza e esse bater de asas para o ideal, representado à imaginação dos gregos na fábula de Ícaro, não serão em verdade causas de permanente desgraça? Feira de ironia, a realidade parece condenar aqueles que ousam querer desvendar-lhe as leis, quebrando o selo terrível do mistério. Contraditório na essência íntima do seu próprio ser, o mundo esmaga quem se propõe vencê-lo, desflorando-lhe a intimidade dos segredos. Viver é ignorar”. No fundo, o desvendar desse mistério e o tentar propor soluções para os problemas pode não ter resultados imediatos, mas é suscetível de abrir caminhos futuros. Eis o que procurou a geração de Eça de Queiroz. No debate parlamentar, o deputado José Luís Carneiro lembrou que este preito de homenagem constitui também um agradecimento à família de Eça, que legou o seu património material e imaterial à Fundação sediada em Santa Cruz do Douro, em Baião, agora presidida pelo bisneto do escritor, Afonso Cabral. E recordou o papel de Manuel de Castro, neto do romancista, que presidiu à Câmara de Baião, e de D. Maria da Graça Salema de Castro, promotora de um extraordinário projeto de desenvolvimento, que constitui a afirmação do património cultural como irradiação de iniciativas que através da memória promovem a emancipação dos povos e a justiça social. E assim se concretiza a fidelidade ao pensamento de Eça de Queiroz e da sua geração – para quem o País não poderia ser condenado ao atraso e à mediocridade. E as “honras de Panteão Nacional” significam reconhecimento de um excecional contributo cultural e cívico.

Guilherme d’Oliveira Martins

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