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Gastão Cruz (1941-2022)

QUERIDO GASTÃO!

O Centro Nacional de Cultura perdeu um dos seus mais fiéis amigos.

Já ia fazendo falta, mas podíamos sempre sentir o calor da sua presença teimosa.

Pode dizer-se que foi um dos jovens poetas do início dos anos sessenta que fez do Centro uma das suas casas, ao lado de um notável grupo que aqui assentou arraiais, ao lado de Sophia de Mello Breyner – num culto persistente da cultura como encontro permanente entre a arte, o teatro, a literatura e o pensamento.

O Gastão vinha sempre. Esteve connosco enquanto nos pôde acompanhar. E não esquecemos a sua generosidade. E lembramo-nos da sua atitude jovial, durante tanto tempo.

Por estes dias, deambulei com o estio, a música das cigarras e as palavras de Gastão (“Os Poemas”, Assírio e Alvim, 2009): “A luz amadurece as / pedras e os figos nos lados dos caminhos / adoça as alfarrobas fende a casca / cinzenta das / amêndoas e desprende-as / varejamos / as que ficam presas de leve / aos ramos; / no armazém da casa amontoadas / descascar as / amêndoas o verão”. Mas também lembro o ritmo antigo, junto de quem conheci e amei: “Na horta atrás da casa laranjeiras / figueiras e uma / romãzeira junto à nora / Às vezes vagarosa a mula com antolhos / rodava toda a tarde / fazendo os alcatruzes despejar / incessantemente água”. É quase perturbador como tudo se assemelha. Estou a ver tudo como se fosse agora. Este Mediterrâneo banhado pelo Atlântico leva-nos muito longe, aos fenícios e cartagineses, aos gregos e romanos, aos misteriosos povos da língua do Sudoeste.

E vêm à lembrança Manuel Viegas Guerreiro, com a sua especial atenção, às tradições e costumes, à memória imaterial, mas também Miguel Torga, no Bailote, sentado em Albufeira, num círculo de amigos, com o doutor Serra, a comentar a política, a gozar o fim da tarde e o luminoso pôr-do-Sol. Ainda há pouco o recordei com a Clara, e reluziram-lhe os olhos com essas recordações.

E não esqueço Gastão Cruz a lembrar Sophia e Ruy Belo em “Repercussão” (2004) na Esplanada do Campo Pequeno (“Não achas que a esplanada é uma pequena pátria a que fomos fiéis?”): “o autor entrara e a presença / dele tinha tornado mais longa a hesitação / entre o sentido e o som ou suprimira-a? / É pouco fotográfica a memória / sonora e uma noite em casa de Sophia / (Que fica dos teus passos dados e perdidos?) / mais do que cada frase, cada pausa / do voo do tempo fizera a suspensão / seria primavera novamente / era talvez em tempo de tormenta / janeiro de 70 mês de febre / um dia só que na memória sobra / (o resto vem do Ruy Belo / Ruy Belo é o poeta vivo que me interessa mais / e é talvez hoje o tempo de tormenta”…

Quantas memórias são suscitadas por este regresso às ruas de Faro e ao rincão algarvio, povoados por tão velhos amigos? 

E envio um especial abraço ao João Cruz e a toda a família. 

Guilherme d’Oliveira Martins


Notas Biográficas

Gastão Cruz nasceu em Faro em 1941, era licenciado em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e autor premiado de vários títulos de poesia e ensaio. Ainda estudante universitário, começou a publicar em jornais e revistas poemas e artigos sobre poesia. Na mesma altura, participou ativamente nas greves académicas de 1962 e foi um dos organizadores da “Antologia de Poesia Universitária” (1964). O seu primeiro livro, “A Morte Percutiva”, data de 1961. Em 1961, com Fiama Hasse Pais Brandão, com quem casou, com Casimiro de Brito, Maria Teresa Horta e Luísa Neto Jorge lançou os cadernos “Poesia 61”, iniciativa muito marcante na literatura contemporânea. Depois, publicou, entre outros, “A Poesia Portuguesa Hoje” (1973), “Campânula” (1978), “Órgão de Luzes” (1990), “Transe – Antologia 1960-1990” (1992) e “As Pedras Negras” (1995). Os seus ensaios sobre poesia, “A Poesia Portuguesa Hoje”, foram editados pela primeira vez em 1973. “A Vida da Poesia – textos críticos reunidos” (2008) foi a mais recente recolha do seu trabalho ensaístico. Em 2009, reuniu a sua poesia no volume “Os Poemas”, tendo posteriormente publicado “Escarpas” (2010), “Observação do Verão” (2011), “Fogo” (2013), “Óxido” (2015) e “Existência” (2017). Em 1975, Gastão Cruz foi um dos fundadores do grupo Teatro Hoje, posteriormente fixado no Teatro da Graça, que dirigiu e para o qual encenou peças de Crommelynck, Tchekov e Strindberg, assim como uma adaptação do romance “Uma Abelha na Chuva”, de Carlos de Oliveira. Entre 1980 e 1986 foi leitor de português no King’s College, na Universidade de Londres. Em 2019, foi agraciado pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa com o grau de Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique. Ao longo da carreira, recebeu ainda, entre outros, o Prémio D. Diniz, em 2000, pelo livro “Crateras”, o Prémio do P.E.N. Clube Português de Poesia, em 1985, 2007 e 2014, respetivamente, pelas obras “O Pianista”, “A Moeda do Tempo” e “Fogo”, o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores, em 2002, pela obra “Rua de Portugal”, e ainda o Grande Prémio de Literatura DST, em 2005, por “Repercussão”, e o Prémio Literário Correntes d’Escritas/Casino da Póvoa, em 2009, por “A Moeda do Tempo”. Em 2013, a Fundação Inês de Castro homenageou o poeta atribuindo-lhe o Prémio Tributo de Consagração. Foi ainda tradutor de autores como William Blake, Jean Cocteau ou William Shakespeare.

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