Crónicas de Viagem - MYANMAR E TAILÂNDIA

O Reino de Arracão – Crónica IV

Voo 7Y para Sittwe. Foi sempre difícil chegar a Mrauk-U no antigo reino de Arracão e continua a sê-lo – apesar de tudo este é um voo regular. Os efeitos da monção deste ano, especialmente rigorosas, obrigaram o grupo do Centro a usar o meio aéreo para chegar à Veneza birmana. Mas não poderíamos faltar. Ainda sob os efeitos da monção foi feita a subida marítima desde o golfo de Bengala até Mrauk-U. Mas como é hábito nestas paragens, depois da chuvada, veio a bonança e à chegada à cidade os viajantes foram presenteados com um magnífico e esplendoroso pôr-do-Sol – e com um belo e retemperador acolhimento no Mrauk U Princess Resort Hotel. Camões é lembrado: «Olha o reino Arracão; olha o assento / De Pegu, que já monstros povoaram» (Canto X). E Tomé Pires na sua «Suma Oriental» fala-nos do reino que fica entre Bengala e Pegu. Arracão é o exemplo do lugar que atraiu os mercenários portugueses na triangulação em que sempre insiste Luís Filipe Tomaz. António Bocarro diz que os portugueses «vendiam por grandes preços recebendo tudo em ouro de que muitos ficaram ricos e se vendia de sorte que se pesava de uma parte arroz e da outra ouro». Maria Calado e Luís Filipe Tomaz, incansáveis, explicam não só como era difícil aqui chegar (o que todos compreendem), mas sobretudo o carácter muito especial de quem insistia e se fixava por aqui… Data do século XV da nossa Era a elevação da cidade de Mrauk-U a grande capital do último e poderoso reino de Arracão unificado. As relações comerciais desenvolveram-se com a Pérsia, Índia, Arábia, Pegu, Portugal e Países Baixos. E aqui se estabeleceu a importante comunidade de luso-descendentes no Bairro de Daingrih-pet, que vem descrito com pormenor pelos viajantes do século XVII e XVIII. Os reis de Arracão (Rackine) encontravam nessa relevante localidade os melhores artilheiros e marinheiros, cabendo aos mercadores o intenso comércio do arroz, do algodão, do marfim, dos cauris, dos rubis, das especiarias, dos cavalos e dos elefantes. A grande referência portuguesa (para já não falar de Brito e Nicote) é Sebastião Manrique (1590-1669), autor do célebre «Itinerário das Missões da Índia Oriental» (1649), monge agostinho português que partiu para Goa e Cochim, donde saiu para Ugulim (Bengala) e para o nosso mítico reino de Arracão. Aí pediu ao Rei Sirisudhammaraja terreno para construir um templo cristão para estabelecer uma comunidade portuguesa, com liberdade de culto. O templo seria sagrado a 20 de outubro de 1630. Desenvolvendo a sua atividade em Bengala, apenas voltaria a Mrauk-U em 1633, onde ajudou as autoridades portuguesas do Estado da Índia, em especial o Vice-Rei D. Miguel de Noronha, na tentativa de celebração, não conseguida, de uma aliança com o Rei de Arracão. Apesar do insucesso político, Manrique manteve-se na cidade a pedido do rei. Foi o tempo em que lhe foi apresentada por um monge budista a carta de um ignoto mercador português, Inácio Gomes, de Estremoz, que tinha naufragado há mais de vinte anos e tinha sido acusado de pirataria, ficando inválido pelas sevícias de que foi vítima. Disfarçado de monge budista, com o hábito amarelo, Manrique foi ao seu encontro nos confins da selva e ficou seis semanas com ele e seus companheiros, onde batizou, confessou e levou ecos da fé de Cristo. Sebastião Manrique deixou-nos uma preciosa descrição dos costumes e lugares por onde passou, designadamente de Arracão, com os seus 160 mil habitantes, onde assistiu à coroação do rei em 1635, numa cena trágica e épica, em que um conselheiro muçulmano convenceu o pobre monarca (apavorado com uma suposta maldição) a tomar, contra a sua crença budista, um estranho elixir fabricado com sangue de vários milhares de vítimas humanas. A memória é deveras perturbadora, e Manrique muito pouco pode fazer contra a força da magia e da cegueira obscurantista. O certo, porém é que o frade agostinho é um precioso cicerone, que certamente continuará connosco, que em muito completa a literatura de Fernão Mendes Pinto…

Guilherme d’Oliveira Martins

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