A Vida dos Livros

“Estórias com Figuras” de Antonio Tabucchi

“Estórias com Figuras” (D. Quixote, 2020), foi a última obra publicada em vida por Antonio Tabucchi, em 2011. Sai a lume entre nós numa bela edição com traduções de Gaëtan Martins de Oliveira e Maria José de Lancastre e dois textos escritos diretamente em português pelo autor.

PINTURA E ESCRITA…
Como Tabucchi confessa: “aconteceu muitas vezes a pintura vir solicitar a minha escrita”. E fala-nos, como exemplo, da circunstância em que entrou no Museu do Prado, numa tarde longínqua de 1965, e ficou “cativo perante Las Meninas de Velasquez, ficando incapaz de abandonar a sala até ao fecho do museu”. E o certo é que sem essa experiência não teria havido O Jogo do Reverso (1981)… “Da imagem para a voz o caminho pode ser breve, se os sentidos responderem. A retina comunica com o tímpano e ‘fala’ ao ouvido de quem olha; e para quem escreve, a palavra escrita é sonora: ouve-a primeiro na cabeça. Vista, ouvido, voz, palavra…”. Mas não há um sentido único, há uma “corrente alternada”. E “a palavra, ao regressar, traz consigo outras imagens que antes não existiam: inventou-as ela”. Esta é a chave destas “estórias com figuras”, nas quais encontramos o que constitui a riqueza da genial capacidade do romancista. O sonho e a realidade encontram-se e como na grande literatura, que aqui encontramos, o leitor é permanentemente transportado para uma vida outra que completa e enriquece o quotidiano da existência. E neste caso, a pintura integra a escrita do autor – como estímulo e insinuação, mas essencialmente como encantamento. E  este especial encantamento leva-nos ao mundo e ao universo criativo do romancista, enriquecendo-o e dando-lhe sentido pleno.

SEMPRE O DR. PEREIRA
Em “Olha quem chegou, o Dr. Pereira!” damos de caras com a personagem bem conhecida e presenciamos uma visita fantasmagórica através do retrato feito por Giancarlo Vitali. “Alguém convocara o fantasma, ao materializa-lo numa imagem. Agora o ícone de Pereira encontrava-se diante dos meus olhos, maciço, bem visível em toda a sua ‘pereiridade’”. E deste modo a sombra torna-se ícone e transforma-nos em participantes da narrativa – em que somos levados a reentrar. Mas não se trata de um “viajante estático”, como o de Costa Pinheiro, em que Fernando Pessoa tem nas suas mãos a miniatura do navio das “viagens nunca feitas”, lembrado da original navegação, feita aos dezassete anos, no regresso de Durban. Pereira movimenta-se e chega como criatura diante do criador, pronto a discutir quem chamou e quem respondeu. E se falamos do encontro da criatura e do criador temos de invocar o pintor Giancarlo Savino, “completamente só na sua velha casa”, sem um gato sequer, “porque quer estar só”, preparamdo-se para receber as suas criaturas, sem saber muito bem quais virão. “Pega nos tubos de aguarelas e distribui tintas em tigelinhas, misturando-as com água, ao lado das folhas de papel, como se tratasse de um alimento mágico”. É um festim de imaginação. “O Pintor levanta o copo e diz: vinde, criaturas visitantes”. E eis que nascem as criaturas do criador, em fila sobre os guardanapos… Depois serão encerradas nas páginas de um livro. Há sempre um livro pronto para albergar cores ou palavras, criaturas ou existências. É assim com o pintor ou com o escritor, com o músico ou o arquiteto… E se o Dr. Pereira simboliza a outra dimensão do tempo, podendo nós viver com as gerações que já não estão no nosso convívio, um quadro de Alessandro Tofanelli, Presto o tardi, permite-nos ir até à dimensão de uma “janela sobre o desconhecido”. E no entusiasmo desse cenário imaginário desenhado por um arquiteto amigo, a personagem aproxima-se da janela e “instintivamente tenta por a mão lá fora., como para acenar a alguém que não estava lá ou simplesmente para tocar o ar no exterior. Mas a sua mão chocou com o acrílico” – porque a imaginação tem limites…

E BERNARDO SOARES
Giuseppe Modica põe-nos diante de La terrazza di Pessoa… Trata-se das férias de Bernardo Soares, que escreve a Pessoa para confessar com mágoa não poder, nesse ano de 1934, jantar no Natal no restaurante do costume com o seu amigo. Era setembro e Soares passaria até ao Natal numa villa magnífica, embora com uma fachada bastante gasta, em frente ao mar, cedida pelo patrão. Trata-se de um convite tétrico. Soares, o quase ortónimo, teria como único companheiro Sebastião, “um velho papagaio que sabia dizer algumas palavras e que o carvoeiro tinha prometido emprestar-lhe durante alguns dias para que ele não se sentisse demasiado sozinho nas suas férias de Cascais”. Deixado sem mais em tão estranho destino, “ficou sozinho no terreiro, sentou-se nos degraus e pôs-se a olhar para o mar. Pensou outra vez que era o seu último Natal, mas pensou também que não tinha importância. Depois puxou de um maço de Provisórios e pôs-se a fumar um cigarro”… Os cenários improváveis constituem, afinal, o melhor modo de tentar entender o mundo. António Dacosta é visto em sonhos e permite que o escritor entre no quadro que estaria a pintar. Maria Helena Vieira da Silva deixa aos seus amigos dezanove cores, entre as quais “uma terra de Siena queimada para o sentimento da durabilidade”, num misterioso jogo de xadrez. José de Guimarães põe a imaginação criadora num pequeno automóvel, que se deixa vencer pelo esgotamento do consumo e deseja ardentemente o fim dos seus dias. Em Paula Rego revela-se a invocação de “Rosamunda” no cenário misterioso e enigmático de um fabulário inesgotável. Com Bartolomeu Cid dos Santos, lembramos que “as utopias são frágeis, mas quando se convertem em arte não temem o tempo alcançam uma eternidade própria e uma beleza que não teme as modas e o vento que as traz”. Valério Adami retrata António Tabucchi como o intérprete de sonhos ambivalentes que nos fascinam sempre. Mas António Tabucchi foi sempre um cidadão atento e empenhado em nome das causas justas, preocupando-se com os egoísmos destruidores da democracia e dos direitos humanos. A partir da série de Graças Morais, A Caminhada do Medo (2011), invoca Eneias, fundador mítico de Roma, (agora renomeado como Anónimo), cantado por Virgílio e fala do fim de um mito. É da Europa que se trata nesse diálogo: “Eles desembarcaram na Lua e os astros não opuseram resistência. Mas é proibido desembarcar nas margens da Fortaleza Schengen”… A democracia confunde-se com “ruínas fumegantes, morte desprezo e cinzas”. E o mito desvanece-se: “Em tempos, o Mito era o nada que é tudo. Hoje é apenas o nada”… E assim, profeticamente, se antecipava o que depois veio a acontecer e que continuamos a presenciar a cada passo. No fundo, a leitura de Tabucchi representa, em aparição onírica, a procura de compreensão do mundo que nos rodeia, com uma dimensão ética em que a busca da humanidade está sempre presente.

Guilherme d’Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

Subscreva a nossa newsletter