A Vida dos Livros

Eduardo Lourenço

Um ano depois de nos ter deixado Eduardo Lourenço é recordado em diálogo com o poeta António Osório, na desconstrução dos mitos e na consideração dos mesmos como fatores críticos.

UMA FORMA ESPECIAL DE COERÊNCIA
Se há quem insista em salientar o carácter da sua obra, algo fragmentária, a verdade é que só quem verdadeiramente a não conhecer pode fazer essa simplificação. Por outro lado, o facto de ter analisado a cultura portuguesa no seu conjunto, complexo e heterogéneo, suscitou a ideia de um falso saudosismo. Já o disse diversas vezes, não haver, porém, sombra dessa tentação na obra de Eduardo Lourenço, que vai, isso sim, ao encontro do melting pot que nos formou como Finisterra. O carácter marítimo da nossa situação obriga-nos a ver aí uma originalidade incontornável. O Atlântico encontra o Mediterrâneo e, por força dessa ligação, Oriente e Ocidente buscam-se, aproximam-se e desencontram-se. O achamento de novas terras corresponderá à curiosidade e à aventura. Os fundos árabe e céltico articulam-se misteriosamente e assim a língua e a cultura de onde a terra acaba e o mar começa constroem-se complementarmente. De norte para sul e de sul para norte, a língua e a cultura recebem influências diversas e Eduardo Lourenço, ao longo da sua obra foi procurando construir um complicado “puzzle”, não se eximindo a perscrutar os mais misteriosos enigmas. Daí a sua investigação permanente dos mitos, não para os seguir ou para os assumir, mas para partir deles a fim de os desconstruir, compreendendo criticamente uma pátria que se construiu entre a lírica e a tragédia, passando pelo picaresco. Contudo, essa ciclotimia apenas pode ser compreendida se formos capazes de ligar elementos contraditórios. Assim se entende a insistência na Europa como encruzilhada de destinos, e não como realidade fechada ou fortaleza. Com Camões, Garrett e Herculano, com a geração de 1870, mas também com Cesário, Camilo Pessanha e Fernando Pessoa do que se trata é de abrir horizontes e não de nos fecharmos sobre nós mesmos nem de cair na tentação da autossuficiência. Como quiseram a emigração liberal ou os jovens do Bom Senso e do Bom Gosto e das Conferências do Casino, haveria que pôr a nossa cultura ao ritmo da Europa. E até Antero encontrar-se-á anonimamente com Michelet…

CONSIDERAR OS MITOS E A SUA CRÍTICA
Quando Eduardo Lourenço pegou em Fernando Pessoa deparou-se-lhe um enigma por resolver. Qual o lugar da “Mensagem” no pensamento do poeta, sabendo-se que a ideia messiânica que parecia estar subjacente à obra, não poderia ser encarada como um absoluto, conhecendo-se as reflexões críticas sobre a cultura e a literatura – sobretudo, quando se descobriam os fragmentos que constituiriam o “Livro do Desassossego” e quando o mistério dos heterónimos estava ainda longe de ser entendido. Pode dizer-se que aquilo que Eduardo Lourenço alcança no que irá considerar como o seu romance – “Pessoa Revisitado” – é a coerência de um poeta em busca de um novo tempo e de uma nova relação com o futuro. Assim, a palavra “Finisterra” tinha para Eduardo Lourenço uma ressonância muito especial, por contraponto a qualquer periferia: “mais do que sítio particular onde enquanto portugueses devemos enfrentar os desafios que uma História sem sujeito representa (…), é o espaço propício de uma reflexão de um estilo novo, como foi outrora a do Renascimento. A nossa época não é unicamente, nem essencialmente, a da robótica e da informática, mas a do fim da Terra.” (Nota ao número 1 da revista “Finisterra”, Inverno de 1989). Os sinais contraditórios que hoje vislumbramos, bem evidentes nas perplexidades da Cimeira do Ambiente em Glasgow, mas também nas incertezas e nos medos ditados pela pandemia Covid-19, obrigam-nos a corresponder a uma necessidade de pensamento crítico sobre os mitos, não como sucedâneos de um novo positivismo, mas sim como fatores indispensáveis à consideração da complexidade e da prevenção respeitante às incertezas, como tem sido referido por Edgar Morin. Vemos, assim, Eduardo Lourenço como um incansável interrogador da diversidade, do pluralismo e da complexidade. Daí a riqueza da sua obra, que nos permite acompanhar a literatura e a criação cultural como uma realidade em progresso, uma verdadeira peregrinação. E chegamos ao exemplo de Ulisses, nosso símbolo, como ser humano, imperfeito e falível. Com uma artimanha permitiu a vitória grega sobre os troianos, conseguindo depois provar o prazer do canto das sereias sem se deixar aprisionar por elas… Eis o mito em estado puro. Aliás, a propósito de António Osório, que há pouco nos deixou, Eduardo Lourenço diz que “como a de Ulisses a sua astúcia foi a de aceitar-se como simples mortal sempre lembrado em sua travessia do corpo aceso de Penélope. Eugénio Lisboa referiu-se ao ‘fascinante realismo mítico’ desta peregrinação poética. Nada mais exato. Há nela entre mito e realidade uma orgânica circularidade, mas é a realidade na sua nudez solar que é o mito supremo. Ao mais rés da prosa da vida de que os seus poemas são originalíssimo diário, livro da ‘ragione’ florentino e livro de mortos que mais do que o resto avassalam a memória e a transfiguram…” E se falamos da poesia de António Osório e do que dela afirmou o ensaísta é para dizer que há um paralelismo evidente entre o poeta e o percurso do crítico. O percurso do autor de “Raiz Afetuosa” foi o de quem “gostaria de ser visto como alguém que encontrou as suas raízes primordiais na Grécia, emigrou para a Sicília quando da Magna Grécia, sente por Roma uma funda admiração, e pertence a uma geração de uma tradição cultural mediterrânica e atlântica, universalista, que abarca o italiano, o francês, o espanhol e o português”. Também Eduardo Lourenço poderia apresentar este percurso, facto que o conduziu ao ensaísmo na linhagem de Montaigne. Assim, para o caso do nosso ensaísta, temos de esclarecer que, uma vez compreendida a sua obra completa assim poderemos chegar ao entendimento da sua vocação enciclopédica. Mais rica do que qualquer estudo sistemático, ou conjunto de considerações teoréticas, o que podemos perceber na obra do autor de “Portugal como Destino” é uma panorâmica bastante exaustiva da cultura portuguesa contemporânea em movimento, nas suas diferentes componentes, sem a perigosa tentação de apenas procurar descobrir sínteses ou explicações prevalecentes. Daí a referência ao poeta António Osório, em cuja obra Eduardo Lourenço descobre pontos comuns com as suas preocupações e um sentido marcadamente poético, a que o ensaísta nunca renunciou. Contudo, se António Osório praticou sistematicamente a clareza, Lourenço aventurou-se sobretudo no mistério, o mesmo mistério que o poeta perseguiu partindo da realidade palpável das coisas que nos rodeiam. No fundo, o “realismo mítico” é um extraordinário ponto de encontro.  

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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