A Vida dos Livros

Eduardo Lourenço e a revista Finisterra

Eduardo Lourenço dirigiu a revista “Finisterra” durante mais de trinta anos e considerou esse título como uma metáfora, valendo a pena relembrar esse testemunho, no contexto de uma vida plena de reflexões sobre a importância política da ligação entre pensamento e ação.

UM ETERNO RECOMEÇO

Quando apresentou a revista “Finisterra”, no Inverno emblemático de 1989, Eduardo Lourenço afirmou: “Finisterra: um sítio onde a História nos colocou como Europeus do Sul, prometidos a um futuro nem de nós mesmos suspeitado, lugar de margem, de isolamento, de sonho e de vertigem. Apesar das aparências, num mundo onde tudo é já centro e circunferência, este lugar que é ainda nosso, que nos fala antes que nós mesmos falemos como portugueses, é um lugar propício à consideração nua da nossa situação histórica, nacional, europeia, nos finais do século que conheceu mais metamorfoses que aquelas que nos precederam. Em todo o “fim” está inscrito o aspeto de um “começo”. Ou de um eterno recomeço». Eduardo Lourenço tem procurado compreender Portugal, em especial nos anos que precederam e se sucederam à revolução democrática, num momento decisivo em que a liberdade chegou com o fim do império. Contudo, escreveu não para recuperar o país, que não perdeu, mas para o «pensar» com a mesma paixão e sangue-frio intelectual com que pensava quando «teve a felicidade melancólica de viver nele como prisioneiro de alma». E pode dizer-se que suscitou de forma pioneira as questões fundamentais de uma identidade que se interrogava, no regresso ao cais de partida, quando havia que pensar a longa viagem, que passou a suscitar a exigência de “um eterno recomeço”. No final dos anos setenta, em «O Labirinto da Saudade», publicado para a revista «Raiz e Utopia», depois de concluir que a imagem ideal de nós mesmos era desadequada da realidade, disse ser chegada «a hora de fugir para dentro de casa, de nos barricarmos dentro dela, de construir com constância o país habitável de todos, sem esperar de um eterno lá-fora ou lá-longe a solução que, como no apólogo célebre, está enterrada no nosso exíguo quintal».

CONVERSÃO CULTURAL, OLHAR CRÍTICO

De facto, «não estamos sós no mundo, nunca o estivemos». A conversão cultural necessária teria de passar por um olhar crítico sobre o que somos e o que fazemos. É esse olhar crítico que nos conduz naturalmente aos fatores democráticos e ao humanismo universalista de que falava Jaime Cortesão. E assim podemos ler a uma luz nova “A Viagem a Portugal” de José Saramago, numa continuidade ibérica, tão bem entendida na memória de Miguel de Unamuno em Salamanca. Daí a importância do magistério de Eduardo Lourenço como um cultor natural dos Estudos Ibéricos, ou não fosse ele natural da raia beirã, onde se pode compreender bem a simbiose entre o ficar e o partir e a fronteira como lugar de encontro e diferença. Deste modo, percebemos bem como nos tornámos Todo o Mundo e Ninguém, do mesmo modo, aliás, como todo o Ocidente. E com o tempo, num movimento uniformemente acelerado, Portugal, a Europa e o mundo obrigaram-nos a repensar o destino como vontade, seguindo a lição da Conferência de Antero no Casino Lisbonense sobre as Causas da Decadência dos Povos Peninsulares. E se falo da célebre geração de 70 é porque Eduardo Lourenço tem no seu código genético de pensador a marca fundamental de uma síntese fantástica que liga o grito dos jovens de Coimbra às Conferências Democráticas do Casino Lisbonense e ainda ao impulso futurista do Orpheu. E assim o cultor por excelência do ensaio na segunda metade do século passado procurou ligar a razão e o mito, o idealismo e o sentimento trágico da vida. E, hoje, acordados à força pelas crises (financeira e pandémica) percebemos que os impulsos que clamam «Indignai-vos!» foram profundamente sentidos pelo pensador. Eduardo Lourenço empunhou, assim, o estandarte europeu, com especial empenho, mas sem demasiadas ilusões: «A cada um sua utopia. Utopia por utopia, como europeu desiludido mas não suicida, prefiro ainda a de uma Europa apostada em existir segundo o voto dos que há meio século a sonhavam, não como uma continuidade óbvia de um passado “europeu” sem identidade, mas como uma aposta numa Europa, empírica e voluntariosamente construída pelas “várias europas” que são cada uma das suas nações».

COMPROMISSO E AÇÃO

Não é uma pseudo-América de segunda ordem que visamos ou que está em causa, mas uma saída que exige compromisso e ação. Daí a necessidade de pensar Portugal como vontade e como comunidade plural de destinos e valores, capaz de pôr em diálogo os mitos e a razão, procurando afastar a maldição do atraso. É esse o “eterno recomeço” que Eduardo Lourenço viu na metáfora de Finisterra. O enigma português não pode ser respondido ou encontrado através de qualquer simplificação – ora idealista, ora sentimentalista, ora materialista. Por isso, só a heterodoxia lourenciano permitiria fazer entender o nosso cadinho identitário, indo ao encontro da miscigenação, ligando as ideias e a emoção, e percebendo que a alternância cíclica do otimismo e do pessimismo, entre sermos os melhores ou os piores, nos obriga a assumir o mundo da vida, não como bipolaridade mas como desafio realista. Por isso, na Expo-98, falou de «maravilhosa imperfeição», ligando-a à complexidade e à diversidade. A obra do ensaísta procurou, por isso, pôr-se no outro lado das coisas, assumindo individualmente a missão, que aprendeu em Montaigne, de partir do eu, do incómodo eu, para o diverso outro. Foi, assim, heterodoxo lúcido em busca de mais luz (como Goethe), para poder perceber as diferenças, as particularidades e a universalidade do ser.

Não por acaso, Eduardo Lourenço é um cultor de paradoxos, ciente de que a cultura se enriquece pela capacidade de ver o mundo do avesso ou de fora e de olhar para além das aparências. «É a vida mesma que nos biografa – por isso é a nossa vida – e, escrevendo-se em nós, nos autobiografa sem que a ninguém, salvo essa vertiginosa musa, possamos imputar tão extraordinária façanha». Com o dom de usar as palavras para melhor as adequar ao mundo da vida, o ensaísta não esconde que a essência do género que cultiva, tem a ver com a confissão na primeira pessoa do singular. «Nisso quem está a menos, somos nós, e a vida tão excessivamente a mais que só a conhecemos por nossa nos intervalos em que a temos como se de outro fosse. Só os outros nos tiram retratos e só a coleção aleatória destas vistas ocasionais dos outros sobre nós ocasionalmente arquivadas, se isso valesse a pena, para termos mais tarde e acabada a vida que não nos tem, seria então um “autorretrato”». Em tempos, não por acaso, um grafólogo identificou na escrita do ensaísta «uma excessiva necessidade de outros», e o próprio, paradoxalmente, comparou-se a Judas, que precisava desesperadamente de Jesus Cristo… Voltando ao primeiro editorial de Eduardo Lourenço na revista “Finisterra”: “O futuro, (…) o próximo da cultura, sob todas as suas formas, é o de integrar essa nova condição de finisterreanos, e através dele o de relativizar, em função dessa nova exigência que já começou, todas as urgências, mesmo as mais imperativas, do que continuamos a pensar e a ler como aventura histórica inscrita e circunscrita no espaço natural, física e simbolicamente instável do planeta sublime que já comtemplamos do exterior.(…). Talvez pelo hábito de viver a nossa situação solitária de habitantes de Finisterra e a sua estranheza e mistério como naturais, nós estejamos mais aptos do que outros para vestir, compreender e nos reajustar a esta vertiginosa revolução do imaginário terrestre que tem lugar a nossos olhos”.

Guilherme d’Oliveira Martins

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