DIÁRIO DE AGOSTO

DIÁRIO DE AGOSTO (XXIV) :: SHAKESPEARE CENSURADO…

Ainda há muito pouco, Luís Miguel Cintra recordou o momento em que Sophia de Mello Breyner disse ter terminado a tradução do «Hamlet» de Shakespeare.

Foi um momento heroico. Trata-se de uma obra-prima da língua portuguesa.
O mais curioso é que ocorreu em relação a esse texto de 1965 um episódio caricato que dá bem ideia do absurdo que é sempre qualquer ato de censura. 

António Alçada Baptista pretendeu publicar um excerto dessa magnífica tradução na revista «O Tempo e o Modo» – mas, como acontecia nesses casos, era necessário enviar as provas do texto à Comissão de Censura. Importa esclarecer que a revista foi das mais martirizadas pela censura, tendo sofrido a proibição de cerca de metade dos textos que, entre 1963 e 1969, foram a exame. 
Inesperadamente, o texto de Sophia veio totalmente cortado. António Alçada ficou estupefacto. Não esperava que tal acontecesse relativamente àquele texto clássico. Pegou no telefone e falou ao coronel dos serviços de censura. Eram coronéis reformados que normalmente estavam encarregados dessa tarefa… 
Do lado de lá da linha, o censor confirmou o corte total do texto. António, com uma paciência infinda, explicou quem era Shakespeare e que o texto era do século XVII. No entanto, inabalável, o coronel insistiu na decisão. Era assim, não havia volta a dar… Mas não dava razões…
Perante a insistência, lá veio a justificação. É que no «Hamlet» há uma personagem de nome Marcelo – e (ainda que Salazar estivesse de saúde) falava-se com insistência na hipótese de Marcelo Caetano poder suceder ao Presidente do Conselho – como aconteceria três anos depois… E o censor estava convencido que havia naquela publicação uma intenção politica qualquer… 
Não se conformava, porém, António Alçada – e, palavra puxa palavra, tudo acabou com um corte parcial, não se publicando a fala de Marcelo…

DIÁRIO DE AGOSTO
por Guilherme d’Oliveira Martins
24 de agosto de 2017

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