A Vida dos Livros

“Diálogo com António Sérgio” de A. Campos Matos

A obra das Edições Colibri, 3ª edição, 2019, reúne um conjunto de textos antológicos, a partir de originais do próprio autor dos “Ensaios”, montados em forma de entrevista, o que permite um contacto direto com a obra de um autor fundamental do século XX.

VOCAÇÃO PEDAGÓGICA
A abrir o Diálogo com António Sérgio, Agostinho da Silva, num texto publicado em 1983 no JL diz-nos: “Creio que nenhum dos grandes vultos da história da cultura portuguesa poderá ombrear com Herculano tanto como Sérgio. Ligam-nos exigências do documento, a privacidade do pensar lógico (se é que há outro), a vocação pedagógica, a integridade do comportamento, a incansável intervenção cívica, a dedicação a um projeto de Portugal, a insistência numa reflexão de conjunto, e, na expressão e variedade de estilo, ainda mais vincada no de Vale de Lobos. Excede-o Sérgio na conceção filosófica, que vai além do kantismo”. Nada melhor do que, neste número celebrativo do JL, invocar o ensaísta pela mão de um sergiano de provas dadas, como Campos Matos, sob a memória de Alexandre Herculano e através da recordação de Agostinho da Silva. Passados cinquenta anos depois da morte de António Sérgio, é fundamental voltar a lembrar o que José Cardoso Pires perguntava no célebre número especial de “O Tempo e o Modo” (1969): “Quantos anos levará o País a inventariar criticamente o espantoso trabalho deste homem de exceção?”. É uma tarefa que nos está confiada e exigida, compreendendo o que o próprio ensaísta nos ensinou – a ler criticamente uma obra de ideias, contrapondo e confrontando argumentos, provas, evidências, dúvidas, incertezas… Uma leitura acrítica será sempre uma traição, já que o pensamento flui permanentemente e só pode tornar-se vivo se for posto à prova, confirmado ou infirmado… “Sou apenas pedagogista, uma sorte de pregador, um filósofo, um campeador pela cultura e pelo bem do Povo cujo único cuidado são as pedras vivas que sofrem; e se às vezes problematizo sobre temas de História faço-o como ensaísta de soluções hipotéticas acerca da maneira de interpretar o que foi”… (Ensaios, II). O estudo histórico visa, no fundo, a melhor compreensão da humanidade, como realidade que se projeta no presente, a partir do passado com compreensão dos desígnios futuros. A leitura de um texto, ainda atualíssimo, como Educação Cívica demonstra bem como António Sérgio considerava a aprendizagem como fator essencial de desenvolvimento, pensando a história não como modo de mudar a mentalidade de quem a estuda, mas como forma de viver melhor e com mais exigência. Daí a importância do ensaísmo. “Entre nós (como diz Sílvio Lima), o ensaísmo renascentista só entre navegadores perpassa: esse, porém, muitíssimo limitado na sua alçada (a técnica navegatória, a observação material), por isso que no domínio filosófico e humano a estrita ortodoxia do catolicismo de Trento impunha barreiras de tal forma rígidas que tornavam impossível o mais pequenino ensaio”. A singularidade de Montaigne e a procura do “que sais-je?” romperam esse constrangimento tradicional, abrindo horizontes, como Antero afirmou, melhor que ninguém, ao tratar do tema no Casino Lisbonense, a propósito das “Causas da Decadência”. “O espírito ensaístico é o espírito crítico, é o da dúvida metódica, e o de plurilateralismo de visão racional; é o da plena consciência do caracter hipotético de todo o nosso pensamento e interpretação das coisas”…

O QUE É A CRÍTICA?
E que é a crítica? O entendimento da complexidade e da dificuldade das coisas, o ceticismo ativo, a sinceridade connosco. E eis que se trata de usar o método positivamente. Assim como as navegações pressupuseram um crer consciente e positivíssimo, não puderam ser “a acertar” ou pelo uso do improviso. Não. “Atos sem dúvida de estupenda audácia são planeados e encaminhados por uma grande obra de Inteligência. Nada de aventureirismos nem de sonambulismo, mas um modelo acabado de razão prática: o claríssimo pensamento precedia o nobre feito”. A fixação e o transporte constituem, deste modo, bons exemplos de reflexão para Sérgio, a propósito das duas políticas nacionais de Portugal. Estas não podem ser vistas de forma simplificada e unilateral: a doutrina da fixação “não é uma ideia exclusiva, não pretende que desistamos de comerciar e de transportar; muito pelo contrário; (Sérgio) sustenta, porém, que a atividade comercial marítima não será sólida e vigorosa se não assentarmos ao mesmo tempo, e na mais pujante vitalidade, a base económica metropolitana e a prosperidade do nosso agrícola, de que depende o emprego para os demais cidadãos; que a faina da periferia, que essa corrente vital do exterior para o interior, ou centrípeta será mórbida, e extenuante se não for forte e regular a vitalidade do seu núcleo, e saudável a corrente sanguínea que vai de dentro para o exterior, ou centrífuga, na lida económica do País…”. Longe da ideia de que as inércias podem ser criadoras de riqueza, o ensaísta fala-nos na necessidade de planeamento, de cooperação e de uma organização das instituições e das elites de modo a fomentar o progresso. Na linha de pensamento da Geração de 1870, o ensaísta recusa o fatalismo do atraso e propõe não só uma explicação para incapacidades antigas, mas também saídas futuras para superar bloqueamentos e fragilidades ancestrais. 

UM PENSAMENTO ATUAL
Que propunha, afinal, António Sérgio? “Procure adquirir cada cidadão português uma noção geral da maneira prática de darmos ao país da realidade o lugar que lhe compete; procure governar a sua vida económica por meio de instituições cooperativas; procure compreender alguma coisa dos interesses económicos da sua terra, de como esses interesses tomarão corpo nas cooperativas e nos sindicatos, de como os grupos desses interesses se organizarão no município, e os interesses provinciais nas assembleias provinciais que devem ser corpos legislativos com larga alçada administrativa, sobretudo pelo que respeita às finanças e à economia”. Urgia compreender as condições materiais complexas e diversas e a necessidade de elites locais, “capazes de dirigir com espírito largo os negócios concretos da região, de civilizar o povo com quem estão em contacto e de inspirar as decisões do governo central”, chamando o Estado as associações e a sociedade civil a colaborar com ele. Descentralizar pelo espírito, seria dar responsabilidade aos cidadãos e realizar o autogoverno, a partir da educação cívica e da escola. Alexandre Herculano falou, por isso, da governação do país pelo país. Daí a necessidade de erradicar uma espécie de parasitismo e de indiferença, pelos quais a sociedade se torna passiva e incapaz de progredir. Por isso, aquando exerceu funções de Ministro da Instrução Pública, num breve período, A. Sérgio deixou-nos a fundamental Junta de Propulsão de Estudos, para apoiar os estudiosos e investigadores nas principais instituições científicas do mundo, porque “cultura não é receber, ingerir, mas essencialmente criar – criar em nós próprios uma mente lúcida universalista, crítica”.

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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