A Vida dos Livros

Desenhos e caricaturas de Amadeo Souza-Cardoso

«Desenhos e caricaturas de Amadeo Souza-Cardoso» é uma reunião de obras do célebre autor do modernismo português falecido prematuramente, vítima da Pneumónica. A exposição está patente na Casa-Museu Teixeira Lopes em Gaia e revela uma faceta menos conhecida do artista, fundamental para a compreensão da sua importância no panorama nacional e europeu.

UM ARTISTA MULTIFACETADO

Como diz Helena de Freitas, Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918) é dificilmente definível, «não tem um discurso regular, desloca-se com destreza entre vários registos na vida e na obra. Percebe-se na diversidade da pose (entre o provinciano e o cosmopolita), no estilo versátil da escrita, na letra instável, no desconcertante traçado das assinaturas»… Essas características notam-se especialmente na caricatura, onde encontramos o peso da onda modernista e dos caricaturistas como Emmérico Nunes e Christiano Cruz. E pode dizer-se que nessa diversidade, é a procura de vários caminhos que detetamos, numa manifestação evidente onde a busca do movimento está constantemente presente. Daí que na revista «Portugal Futurista», Álvaro de Campos se aproxime nitidamente de Amadeo, na perspetiva da diversidade criativa – «só tem direito a exprimir o que sente em arte, o indivíduo que sente por vários». E Almada Negreiros afirmou, nessa mesma linha de pensamento, que Amadeo «é a primeira descoberta de Portugal na Europa do século XX» – e, maravilhado, deu nota de como partiu de uma identidade próxima para a tornar global – «toda a arte reflete o seu rincão natal. E nunca é o rincão natal o que o pintor retrata. O seu rincão natal são as próprias cores. Foram estas cores que teve para começar a sua mensagem de poeta». Ora, se a obra de Amadeo parte da cor desse rincão, a verdade é que pela caricatura o artista aproxima-se das pessoas, através do humor e da ironia. E assim são as duas metades consideradas essenciais por Baudelaire que se encontram na produção multifacetada do artista, que soube lidar com o tempo – ligando as raízes e o futuro, a herança e a necessária transformação pela arte. Numa célebre entrevista ao jornal «O Dia», Amadeo Souza-Cardoso proclamou, por isso, solenemente: «Eu não sigo escola alguma. As escolas morreram. Nós, os novos, só procuramos a originalidade. Sou impressionista, cubista, futurista, abstracionista? De tudo um pouco. Mas nada disso forma uma escola». A permanente demanda e a insatisfação são as marcas dominantes ao longo do seu percurso criador. José-Augusto França fala, nesse sentido, da impaciência, da angústia e de uma criação expressiva e colérica, «misturando na sua definição uma grande liberdade plástica e uma grande necessidade de dar força e imagens, violentas ou irrisórias, a uma ideia do próprio mundo que o pintor pressentia para além de uma aldeia que o destino lhe dera». Compreende-se que a caricatura seja um elemento fundamental na criação do artista. É a necessidade de uma leitura do tempo feita através da deformação da imagem e da cultura do picaresco, para haver um melhor entendimento de um mundo em acentuado movimento. Lembremo-nos da fotografia de 1906 em que Amadeo, com os seus amigos de Paris, recria com imagens vivas “Los Borrachos” de Velasquez. É, no fundo, o espírito da caricatura que aí está, num encontro em que estão Emmérico Nunes, por certo o mais prolífico caricaturista da sua geração, com Domingos Rebelo, Manuel Bentes e José Pedro Cruz.

UMA SELEÇÃO SIGNIFICATIVA

A Casa-Museu Teixeira Lopes recebe uma seleção de desenhos de Amadeo de Souza-Cardoso, trabalhos raramente expostos, que refletem a importância do desenho e, em particular, da caricatura, no processo de formação e afirmação da identidade artística do grande artista de dimensão europeia. Visto em Portugal com perplexidade, pelo seu espírito, aberto, livre e vanguardista, partiu para Paris no início do século XX, integrando um extraordinário círculo de artistas, e desenvolvendo uma grande cumplicidade artística e vivencial com Amadeo Modigliani, a quem é atribuída a obra “Caryatide”, que faz parte da coleção da Casa-Museu Teixeira Lopes e que será exibida nesta exposição, em diálogo com desenhos de figuras femininas do genial pintor de Amarante. Fruto de uma parceria promovida pelo Município de Gaia com o Museu Municipal Amadeo de Souza-Cardoso (de Amarante) e com o Centro de Arte Moderna (CAM) da Fundação Calouste Gulbenkian, esta mostra surge no contexto de uma estratégia de afirmação cultural, trazendo à cidade de Gaia grandes figuras do mundo das Artes como Cruzeiro Seixas, Paula Rego ou Vieira da Silva. Estudiosa e investigadora da vida e obra de Amadeo, a investigadora Catarina Alfaro assume a curadoria de “Desenhos e Caricaturas de Amadeo de Souza-Cardoso”, ajudando o visitante a compreender o percurso único de um artista para quem o desenho e a caricatura foram meios por excelência para a inovação, experimentação e observação crítica da sociedade, que caracterizou a sua fugaz carreira. Um núcleo de desenhos, onde se incluem originais do catálogo «XX Dessins» estará patente na Sala Aureliano Lima das Galerias Diogo de Macedo, enquanto a Sala Branca será dedicada ao percurso biográfico e à caricatura. Na Sala Negra, terá lugar à projeção do documentário “Amadeo de Souza Cardoso – Le Dernier secret de l’art moderne”, de Christophe Fonseca. À semelhança das anteriores exposições realizadas no mesmo local, “Desenhos e Caricaturas de Amadeo de Souza-Cardoso” permitirá a edição de um Catálogo, que contará com os contributos da curadora e da investigadora Leonor de Oliveira. Durante o período da exposição terão lugar visitas comentadas. Esta invocação de Amadeo insere-se no movimento de crescente valorização da vida e da obra do artista – permitindo na faceta dos desenhos e caricaturas compreender melhor a influência que exerceu nas gerações que se lhe seguiram. Ainda que não tenha colaborado nos dois primeiros números de “Orpheu”, estava prevista a inserção do seu contributo no malogrado terceiro número que nunca viu a luz do dia e que está profundamente ligado ao drama de Mário de Sá-Carneiro. De qualquer modo, deve dizer-se que Amadeo é de direito próprio uma das figuras mais marcantes do nosso primeiro modernismo, hoje com um reconhecimento europeu, pela sua originalidade e audácia criadora.

Guilherme d’Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

Subscreva a nossa newsletter